É impressionante a verdadeira operação de guerra, descrita em reportagem irrepreensível da repórter Carolina Vila-Nova no jornal Folha de S.Paulo publicada também em A Gazeta, organizada no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para impedir o aborto legal da criança de 10 anos de São Mateus que engravidou após estupro praticado pelo marido de uma tia, uma violência que se prolongou por quatro anos.
O caso teve repercussão nacional no início de agosto, com desdobramentos trágicos para a vítima, que teve o sigilo de sua identidade violado e acabou sendo achacada por uma turba que teve acesso ao hospital, no Recife, onde ela acabou realizando o procedimento. Dentro da lei.
A mobilização encampada pelo ministério chefiado por Damares Alves envolveu o envio de servidores e até médicos à cidade no Norte do Estado, em um esquema que se desenrolou nos bastidores para mudar a decisão da família e, sabe-se agora com mais clareza, para prolongar a gravidez até o seu limite.
É notório que a menina se encaixava em dois dos critérios que preveem a interrupção da gestação pelo Código Penal: gravidez após estupro e risco de morte, por se tratar de uma criança. A legislação brasileira também permite o aborto em caso de anencefalia do feto, critério incluído após decisão do Supremo Tribunal Federal.
Em nome de concepções pessoais, perfeitamente aceitas em uma democracia, a ministra Damares Alves, advogada de formação, decidiu que as convicções do governo eram maiores do que a lei. E, para impor a continuidade da gravidez, pode ter justamente cometido crimes.
Não só ao oferecer "melhorias" ao Conselho Tutelar de São Mateus, como um Jeep Renegade e equipamentos como ar-condicionado, computadores, refrigeradores e smart TVs, mas também por ter instado seus representantes a vazarem o nome da criança a Sara Giromini, responsável pela divulgação da identidade e do hospital nas redes sociais. Por conta da exposição, a criança foi inscrita no Programa de Proteção a Testemunhas, com mudança de nome e endereço.
O caso explicita o uso da máquina governamental para a defesa de um ponto de vista e, pior, contra uma decisão judicial. Há muito a ser discutido sobre o aborto, não somente pelos vieses éticos e morais, como pelo da saúde pública. É uma questão delicada, que deve ser encarada com seriedade.
Contudo, a lei é cristalina ao permitir o procedimento em determinados casos, e não cabe ao agente público intervir de forma tão articulada, movimentando o aparato estatal por qualquer tipo de convicção. A laicidade do Estado democrático de Direito não é um adorno, do qual se pode desvencilhar quando convém. A lei está acima de todos, é o princípio da civilidade.
Damares foi ao Twitter para contestar a reportagem e, como é praxe no governo Bolsonaro, atacar a imprensa. O ministério foi procurado pela reportagem e teve o devido espaço para o contraditório. Está lá, devidamente publicado, que a pasta respondeu que "a equipe se deslocou para 'acompanhar a atuação da rede de proteção à criança vítima e oferecer suporte do MMFDH e da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNDCA), no sentido de fortalecimento da rede de apoio às crianças vítimas de violência'".
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Damares tem o direito de se defender, é uma garantia constitucional. Assim como terá a obrigação de se explicar.
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