Ao menos no discurso, o governo federal parece ter acordado do sono profundo e finalmente se dado conta de que o Brasil está em meio a uma crise sanitária sem precedentes. Um dia após titubear na reunião em que os governadores cobraram coordenação do Ministério da Saúde para garantir um plano de vacinação consistente, na qual chegou a dizer que o país compraria vacina “se houver demanda”, o ministro Eduardo Pazuello mudou o tom. Na quarta-feira (9) foi mais assertivo ao informar que a imunização contra a Covid-19 pode começar em dezembro ou janeiro, em caráter emergencial. As lacunas, no entanto, persistem.
Sob os holofotes da opinião pública, o governo foi forçado a uma guinada nos rumos. Mas na prática o Plano Nacional de Imunização ainda não passa de uma carta de intenções, baseada em hipóteses, tanto por condicionantes da realidade, quanto por negligência do Executivo federal. O próprio Pazuello apontou uma série de “senões” para que o Brasil inicie a vacinação em dezembro ou janeiro. “Se a Pfizer conseguir autorização emergencial, e se a Pfizer nos adiantar alguma entrega”, listou.
Até o momento, nenhuma vacina entrou com pedido de uso emergencial na Anvisa, nem a Pfizer. O Brasil negocia, mas ainda não fechou nenhum acordo com a farmacêutica norte-americana, que acredita ser improvável conseguir disponibilizar doses antes de janeiro. O ministro também afirmou que “qualquer vacina” que tenha registro no país será utilizada, mas segue ignorando o imunizante da chinesa Sinovac em suas tratativas.
Enquanto o país assiste à crescente taxa de contágio, a gestão da pandemia, que deveria ser estritamente técnica, tem sido vítima de outros tipos de contaminação: o negacionismo do presidente da República e as disputas eleitoreiras. Tanto Jair Bolsonaro, quanto João Doria esticam a corda da politização em um lamentável cabo de guerra em torno da Coronavac. Eles miram em 2022, e o Brasil perde o foco no aqui e agora.
Por um lado, o governador de São Paulo anuncia um precipitado cronograma de vacinação, com início que convenientemente cai no aniversário do Estado, antes que a fabricante apresente resultados preliminares de eficácia da fase 3. Por outro lado, o produto, que mostrou resultados promissores nas etapas iniciais e não pode de forma alguma ser descartado como possibilidade, até o momento não foi incluído oficialmente no plano de aquisição do governo federal.
A reunião convocada por governadores tinha o objetivo de evitar que os Estados brasileiros batam cabeça em um leilão pela vacina, em uma disputa desigual por quem dá mais no balcão de negociação com farmacêuticas. A falta de coordenação nacional é prejudicial aos entes federados menos ricos e desumana com a população desses locais, que ficariam atrás na fila da imunização. Além disso, é irresponsabilidade com o dinheiro público. Em vez do protagonismo que se esperava do Ministério da Saúde, contudo, o saldo do encontro com o Pazuello foi de “insegurança” e “frustração”, nas palavras dos governadores, que receberam respotas burocráticas e evasivas, incondizentes com a pressa, firmeza e transparência que a crise impõe.
As declarações recentes dissiparam, em alguma medida, a nuvem de incertezas. Mas há lacunas imensas, absurdas a esta altura do campeonato. Além de não ter acordos firmados com todo e qualquer fabricante que mostre capacidade de entregar vacinas eficazes, o Ministério da Saúde nem sequer oficializou o cronograma de vacinação. O calendário apresentado no mês passado não passa de uma cópia da imunização contra gripe. O SUS tem uma robusta experiência em campanhas de vacinação, mas o novo coronavírus impõe desafios inéditos. A plano não terá uma vacina única, mas vacinas diferentes, com transporte, acondicionamento, dosagem e prazos de intervalo distintos, o que demanda um arranjo logístico monumental. O país corre o risco até mesmo de ficar sem seringas e agulhas.
Mesmo diante dos atropelos acumulados no decurso da pandemia, como os discursos terraplanistas, a briga com Estados e municípios, a demora em adotar medidas emergenciais, as trocas de ministros no meio da guerra, o encalhe de testes em armazém, o presidente ainda faz um autoelogio, pela forma como lidou com a crise. “Nos comportamos muito bem. Não só na questão da economia, bem como na busca de diminuir o sofrimento de nossos irmãos”, afirmou Bolsonaro, em almoço com militares na quarta. Diante da marca de 178 mil mortos, a declaração é de uma cegueira profunda e cruel. A aquisição de vacinas, que pode amenizar a tragédia humana e, de quebra, ajudar na retomada econômica, está na mesa do Executivo federal. A cada dia de atraso nas decisões, mais de 600 brasileiros perdem a vida. Não há motivo para congratulações.
Este vídeo pode te interessar
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.