No Dia da Consciência Negra, em que deveriam ser debatidas políticas públicas em prol da igualdade, o país acordou com a notícia do assassinato de um homem negro após ser brutalmente agredido em um supermercado de Porto Alegre. O episódio, longe de ser um fato isolado, ilustra à perfeição que existem ainda dois Brasis: um representado por João Alberto Silveira Freitas, vítima da discriminação histórica, e aquele retratado pelo vice-presidente Hamilton Mourão, que insiste em alegar que o racismo não existe.
Calcado no mito da democracia racial, apressadamente adotado pelo Brasil pós-escravidão e que isentou sucessivos governos de promover medidas reparadoras e promotoras de equidade, o discurso do paraíso miscigenado não é nada menos do que negacionista. E o negacionismo parece ter se tornado uma especialidade do atual governo para todos os assuntos incômodos.
No entanto, a exemplo da pandemia e das queimadas na Amazônia e no Pantanal, números e fatos não deixam ninguém mentir. A taxa de homicídios de negros no Brasil, que já era alta, cresceu 11,5% entre 2008 e 2018, de acordo com o Atlas da Violência 2020, divulgado em agosto. Já entre os não negros, os assassinatos caíram 12,9%. A discrepância fica clara em Alagoas: para cada não negro vítima de homicídio, morreram 17 negros.
E a crise sanitária ampliou desigualdades históricas. Segundo estudo do Dieese sobre dados do IBGE, a maioria das pessoas que perdeu o emprego ou deixou de buscar trabalho por falta de perspectivas entre o primeiro e o segundo trimestres de 2020 era negra: 6,4 milhões de pretos e pardos, contra 2,4 milhões de brancos na mesma situação.
Retratos sobre a baixa representatividade de negros na política e em postos de comando nas empresas, sobre a alta porcentagem entre a população carcerária e de baixa renda, sobre a parca participação nos bancos das universidades ao mesmo tempo em que formam a grossa maioria dos trabalhadores informais compõem o filme do que é o Brasil. Deixam nítido se é aquele ilustrado por João Alberto ou se o pintado por Mourão.
É urgente amadurecer o debate no país sobre o que significa o racismo estrutural, sistêmico, institucional. A discriminação racial não é apenas a que grita no meio da rua com Matheus Pires, a que abandona Miguel Otávio sozinho e à própria sorte no elevador, a que agride João Alberto até a morte no supermercado. É a soma de práticas arraigadas na cultura, muitas vezes inconscientes, que ao longo da história naturalizaram uma suposta inferioridade dos negros. Enquanto o país teimar em varrer o racismo para baixo do tapete, a mudança nunca chegará. Um problema, qualquer que seja, só pode ser resolvido se ele for visível. Por isso a bandeira da igualdade não pode ficar restrita aos movimentos negros, embora seja deles o protagonismo. Essa tem que ser uma luta de toda a sociedade civilizada.
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