As diferentes realidades do Brasil, de tratamento e oportunidades, colidem-se com certa frequência no noticiário. E essa percepção acabou retratada em uma sensível reportagem de Roger Santana no ES2, na TV Gazeta. De um lado, uma cuidadora de idosos que, após receber o diagnóstico de um câncer de mama, demorou sete meses para receber o auxílio-doença do INSS e agora vive novo drama para prorrogá-lo em meio à descoberta de um novo tumor, na cabeça. Do outro, um policial militar, flagrado pelas câmeras de um posto de gasolina agredindo um frentista. Desde o ocorrido, em janeiro, o sargento já conseguiu que sua licença-médica fosse revista quatro vezes. Continua, portanto, recebendo religiosamente o seu salário, sem trabalhar. A justificativa médica é desconhecida.
A distância entre esses dois mundos é sideral. Se em tempos menos caóticos já seria complicado para Marinilza de Jesus conseguir realizar a perícia, etapa necessária para o acesso ao benefício, a pandemia veio tornar tudo ainda mais penoso. Além de esperar sete meses para começar a receber o auxílio-doença, por conta das exigências de distanciamento social que suspenderam o atendimento no auge da crise sanitária, ela só teve a autorização do pagamento por dois meses, agosto e setembro, mesmo com a doença comprovada por exames e um laudo médico recomendando afastamento por um ano.
Marinilza agora enfrenta novamente a burocracia para agendar nova perícia, uma situação desumana para uma cidadã que, além de precisar enfrentar uma doença tão grave que acaba de se complicar, ainda tem de arrumar forças para exigir algo do poder público que não é caridade, mas o retorno do que ela contribuiu ao longo de sua vida profissional.
A perícia é, de fato, uma etapa importante na concessão de qualquer benefício médico, para evitar abusos e fraudes. Contudo, o descaso testemunhado em situações como essa infla a indignação. Não poderia ser mais simples?
Com o retorno do atendimento presencial no INSS, o ES2 informou que, até terça-feira (03) no Espírito Santo, das 31 agências, 20 estavam funcionando normalmente, com agendamento somente pela internet ou pelo telefone. E apenas 12 agências fazendo perícias, com 25 médicos.
Já o sargento Clemilson de Freitas acumula 695 dias de licença em seu histórico dentro da PM, de acordo com o Portal da Transparência do Governo do Estado. Desde o episódio de agressão ao frentista no início do ano, em Vila Velha, conseguiu quatro benefícios consecutivos, sendo que o último foi concedido na última semana e vale por 60 dias. O salário de R$ 5.451,53 continua sendo pago.
Mesmo que não pesasse sobre o sargento um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), as diferenças de tratamento seriam clamorosas. Isso porque, como ressaltou o advogado trabalhista Marco Antônio Redinz na reportagem, há regras diferentes entre o trabalhador da iniciativa privada e o servidor público.
A perícia do INSS é uma exigência por quem é contratado sob o regime da CLT, o que não é o caso do funcionalismo. Em cada esfera, municipal, estadual ou federal, as normas são específicas. No caso da Polícia Militar, é patente a facilidade e a agilidade para conseguir uma licença médica.
O que se espera do país são regras mais equânimes, que reduzam esse abismo no acesso a direitos. É preciso haver controle no acesso ao auxílio-doença para evitar fraudes, mas não a ponto de inviabilizar o seu pagamento a quem mais precisa. A burocracia acaba sendo cega. Enquanto para o serviço público, esse acesso é facilitado e pouco transparente - e vale sempre reforçar que as licenças remuneradas são pagas com dinheiro do contribuinte. Uma reforma administrativa precisa enxergar essas incoerências e corrigi-las.
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O desânimo de Marinilza diante da dificuldade de conseguir a tranquilidade financeira para se tratar é um desalento para qualquer nação que almeja mais justiça social. Quando uma cidadã, desamparada, pensa tão seriamente em desistir de um benefício que é seu por direito, é sinal de que o abismo é ainda mais profundo do que se imaginava.
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