O Brasil chegou ao meio milhão de mortes pela Covid-19 da forma mais lamentável possível: sem o governo federal dar sinais de remorso por essa tragédia. Não cansa repetir com todas as letras que essa calamidade social sem precedentes poderia ter sido minimizada com ações sanitárias programadas no momento certo, com a confiança nos protocolos científicos e, sobretudo, com uma organização centralizada que abandonasse a ideologia e buscasse reunir a sociedade civil em torno de um objetivo maior.
Durante algum momento, bem no início dessa linha do tempo fúnebre sem fim, chegou a parecer que haveria uma trégua, que as diferenças estariam suspensas para se combater o inimigo comum, o vírus. Mas o negacionismo, orgulhoso da própria ignorância, expandiu-se na mesma velocidade da doença, ironicamente contribuindo para que ela se fortalecesse.
O registro das 500 mil mortes ocorre quase quatro meses após o país ter atingido a metade desse número, em fevereiro, em meio à segunda onda nacional. As projeções do Instituto de Métricas em Saúde da Universidade de Washington, nos Estados Unidos apontam que até outubro esse número pode chegar a 727 mil, em um prognóstico mais otimista. No caso de algum evento que agrave a pandemia, como a disseminação de novas variantes, a estimativa salta para para 847 mil.
Com o ritmo lento da vacinação - apenas cerca de 11% dos brasileiros estão com o ciclo vacinal completo até agora - e o abandono sistemático de medidas de distanciamento e do uso de máscaras (estimulados pelo próprio presidente da República), a população brasileira atravessa o ano de 2021 com a convicção de que mais mortes se acumularão. Metas de perdas de brasileiros passaram a ser colocadas com uma naturalidade incômoda: sem uma política de enfrentamento nacional, com comprometimento, os números continuarão assustando. E nisso o país também se divide: há os que seguem conscientes de que a pandemia não acabou e lamentam essas perdas e há os que preferem ignorá-las.
Esse meio milhão de mortes chega em um momento de sinalização de uma terceira onda, com registros sequenciais de mortes diárias acima de 2 mil. A transmissão comunitária segue desenfreada — na sexta-feira (18), o Brasil registrou o recorde desde o início da pandemia de notificação de novos casos em 24 horas, com 98.135 registros —, e o sistema hospitalar nem sequer conseguiu se recuperar do colapso registrado em março e abril.
Para piorar, há o risco da disseminação das novas variantes, mais contagiosas e agressivas também entre pessoas mais jovens. O rejuvenescimento da pandemia, ao se dar mais rapidamente do que o ritmo da vacinação, é um motivo concreto de preocupação de especialistas.
Em Brasília, uma CPI investiga as responsabilidades do governo federal nessa catástrofe humanitária brasileira, mas o que se testemunha toda semana é o anacronismo da gestão federal, ainda apegada a tratamentos precoces sem nenhuma eficácia comprovada, descartados por todos os países sérios do mundo. O governo brasileiro só consegue emitir sinais de que desistiu de combater a pandemia, mesmo que o ministro da Saúde dê declarações que reafirmem o contrário. E essa não é só uma questão governamental: a falta de comprometimento de uma parcela da sociedade também reforça essa sensação de que se jogou a toalha.
A apatia e o negacionismo, contudo, não podem vencer. Novos desafios se desenham: o avanço da vacinação não pode significar o afrouxamento dos cuidados pessoais enquanto não houver a cobertura vacinal. Não se pode aceitar que tanta gente continue promovendo aglomerações, celebrações que simplesmente não fazem sentido enquanto mais de 2 mil pessoas ainda morrem diariamente. E esse número tende a crescer nas próximas semanas.
É preciso se mobilizar, no gerenciamento da crise, para evitar que as novas variantes se espalhem e o país testemunhe um novo pico de casos e mortes ainda mais brutal do que o registrado no início do ano. Meio milhão de mortes é um número que precisa significar ação, como forma de reverência a tantas pessoas que se foram cedo demais.
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