Para se ter a dimensão real do significado deste escândalo atual no governo Bolsonaro, com a denúncia da existência de um gabinete paralelo no Ministério da Educação (MEC), é preciso se deixar guiar de volta a 2020.
É dilacerante, afinal qualquer lembrança do ano mais duro para a educação brasileira em sua história recente é difícil demais de ser revivida. Se as carências educacionais eram flagrantes no país antes da pandemia, no seu primeiro ano elas se aprofundaram e seguem sendo o maior desafio desta geração.
Foi nesse contexto que o atual ministro, Milton Ribeiro, assumiu a pasta, em julho em 2020, após a derrocada do olavismo e de sua "guerra cultural" incorporada pelos predecessores Ricardo Vélez e Abraham Weintraub. Duas gestões marcadas por nulidades na área que deveria ser o coração de qualquer governo que deseja melhorar as condições de vida de seu povo.
Em vez de promover melhorias educacionais de relevo, após uma pandemia que fez da educação terra arrasada, Milton Ribeiro, um pastor da Igreja Presbiteriana Jardim de Oração, de Santos, no litoral de São Paulo, teria se enveredado por um caminho de permissividade. Denúncias apontam que o MEC, templo da educação no país, pode ter cedido aos interesses paroquiais alheios aos princípios da administração pública. O Estadão foi o primeiro a revelar como pastores evangélicos, sem nenhuma relação com o serviço público, tomaram a pasta de assalto e agiram como lobistas de baixo calão.
Como não se envergonhar com um pastor que chega ao ponto de pedir pagamentos em ouro em troca da liberação de recursos para construção de escolas e creches em um pequeno município do Nordeste? O prefeito da cidade de Luís Domingues (MA), Gilberto Braga, foi o responsável pela denúncia contra o pastor Arilton Moura. Os valores eram para dar entrada nas demandas ao ministério.
Uma gravação em áudio divulgado pela Folha de S. Paulo complicou ainda mais a situação do ministro. Nele, Milton Ribeiro diz a prefeitos em uma reunião que o presidente Jair Bolsonaro havia pedido prioridade à liberação de recursos quando solicitados por amigos do pastor Gilmar Santos, o que pode ser caracterizado como tráfico de influência. O ministro tratou de desmentir o que a gravação expunha. Em nota, negou que o presidente Jair Bolsonaro tenha dado preferência a prefeituras apadrinhadas por pastores. Uma dissonância que precisa ser investigada. Nesta quarta-feira (23), o procurador-geral da República, Augusto Aras, decidiu pedir autorização ao STF (Supremo Tribunal Federal) para investigar o ministro.
Sob tamanha suspeição, Milton Ribeiro deveria entregar o cargo o quanto antes. Não se trata de uma condenação antecipada, todas as denúncias devem passar por uma investigação seguindo os ritos que dão abertura para o contraditório e a ampla defesa. Não vai ser diferente para o atual ministro. Mas a permanência dele na chefia de uma pasta tão crucial para o país é insustentável. Em qualquer governo sério, é essa a postura esperada. Se não sai por livre e espontânea vontade, seu chefe, o presidente da República, é quem deve fazer as honras.
As possíveis relações de compadrio do governo com dois pastores são graves demais e já mobilizam oposição e até mesmo aliados do governo pela demissão de Milton Ribeiro. Na bancada evangélica, conflitos internos entre diferentes denominações religiosas mostram que não há uma unidade nas relações de líderes religiosos com o poder.
Mesmo que Milton Ribeiro fosse um exemplo de gestor e estivesse fazendo um bom trabalho, promovendo políticas educacionais de impacto, diante de denúncias tão graves o seu afastamento seria inevitável. Mas sua gestão tem sido desastrada, omissa e ineficiente. Exceto, de acordo com as denúncias, quando há a mediação dos religiosos do "gabinete paralelo" que dá agilidade no acesso a verbas públicas. Uma operação que exige apuração rigorosa.
O Brasil segue desnorteado, sem uma missão educacional capaz de envolver a sociedade, plena de sua importância para o crescimento econômico e a redução das desigualdades. Mas, lamentavelmente, o empenho para malfeitos, mesmo em uma área tão sensível, segue incessante.
Correção
24 de março de 2022 às 07:32
Anteriormente, o editorial trazia a informação de que o ministro é pastor da Assembleia de Deus, no entanto, ele é pastor da Igreja Presbiteriana Jardim de Oração, em Santos, São Paulo. O texto foi atualizado e corrigido.
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