Seu Raimundo é um mestre de obras, um representante de parte considerável da população brasileira que dependerá do amparo estatal para atravessar a pandemia. O governo federal estima que até 75 milhões de brasileiros deverão ser atendidos pelos R$ 600 do auxílio emergencial. Estaria tudo certo se a urgência que a ajuda governamental traz no nome fosse efetiva, sem tantas amarras e condições, mas Seu Raimundo é apenas um desses milhões que se veem alijados desse processo quando mais precisam. É o trabalhador que, além dos percalços da falta de ocupação em decorrência da crise, precisa superar os obstáculos da burocracia para conseguir algum sustento. Um drama que teve destaque no Bom Dia, Brasil, na Globo. E emocionou o país.
No Rio de Janeiro, uma fila gigantesca em frente ao prédio da Receita Federal era o próprio contrassenso do isolamento social que se prega para conter a disseminação da Covid-19. Uma aglomeração que começou a ser formada na noite anterior por pessoas que precisam regularizar seu CPF para poder ter acesso aos R$ 600. Felizmente, pelo caminho do Judiciário, a exigência foi derrubada ainda na quarta-feira (15), em uma decisão do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1).
O dilema que se impõe entre a saúde e a sobrevivência tem escancarado a tragédia social brasileira, que é anterior à pandemia, mas lamentavelmente salientada por ela. O trabalhador informal, o microempreendedor individual, o autônomo e o desempregado têm direito ao auxilio, mas ainda não são merecedores de um atendimento digno de um Estado que não abandona a burocracia nem em uma situação de calamidade social como a atual.
Até mesmo quando aposta na modernização, com a implantação de atendimentos digitais, o poder público falha. A grande reclamação de Seu Raimundo era justamente a dificuldade de fazer uma solicitação à Caixa pela internet. Ele, um idoso sem intimidade com o mundo digital, deixou transparecer sua agonia, uma sensação de impotência diante de algo que não faz parte de sua rotina ou não cabe no seu bolso. Acesso à internet ainda é um privilégio no Brasil, por isso aplicativos e sites — que são, sim, necessários — acabam sendo opções que mais excluem do que agregam. Não é, de forma alguma, uma crítica à digitalização, mas à falta de alternativas a ela. O gestor público não pode continuar tão alheio à realidade social brasileira.
As aberrações não faltam. Na mesma reportagem, um dos presentes na fila estava indignado, com razão. Se o funcionamento da Receita Federal começa às 10h, por que não antecipá-lo diante da emergência? A falta de capacidade de reação estatal é um espelho do seu próprio egocentrismo. A população deveria ser soberana, a razão de ser do próprio serviço público é a dedicação aos cidadãos. Não é isso o que ocorre, nem mesmo em situações de tanta vulnerabilidade. Se o Estado brasileiro já não funciona na normalidade, diante da contingência ele consegue ser ainda mais inepto.
Este vídeo pode te interessar
Enquanto no andar de cima, a pandemia ainda é tratada por tantos como um capricho ideológico, o térreo já encara a crise na vida real, com impactos na própria sobrevivência. O auxílio emergencial, que patinou tanto pra ser aprovado, ainda demora a chegar ao bolso do cidadão, atropelado por protocolos que deveriam ser derrubados, pela urgência de quem tanto precisa dele. O poder público precisa estar mais preparado para a calamidade, justamente a situação em que ele é mais necessário.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.