A declaração de Jair Bolsonaro de que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina” é uma falácia. Não apenas falsa, é também perigosa. Tivesse ficado restrita ao cercadinho em que o presidente confraterniza com apoiadores, em Brasília, já seria censurável. Registrada em canal oficial do governo federal, como foi na terça-feira (1º), é absurda. Ao dar eco ao terraplanismo dos movimentos antivacina, o mandatário coloca em risco não apenas a vida de milhares de brasileiros, como também a recuperação econômica que tanto defende.
O Estado não só pode obrigar a população a se vacinar como já previu esse cenário em lei, assinada pelo próprio Bolsonaro em fevereiro, quando a pandemia engatinhava no país. O texto preconiza a imunização compulsória como uma das possíveis medidas de prevenção ao avanço do coronavírus e inclui que o descumprimento pode acarretar responsabilização legal. Não é novidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que acaba de completar três décadas, também estabelece a exigência de algumas vacinas, condicionando a apresentação de caderneta de vacinação atualizada à matrícula na rede pública de ensino, por exemplo.
Foi graças ao seu eficiente programa de imunização, que tem raízes na década de 1970, que o Brasil conseguiu erradicar doenças como varíola, rubéola e poliomielite, antes responsáveis por milhares de mortes de crianças. Desestimular a população a proteger-se pode levar ao risco de que país repita a triste história do sarampo. Varrido do mapa brasileiro em 2016, voltou a registrar surtos a partir de 2018 devido à baixa adesão à vacina.
Além de falaciosa e perigosa, a declaração de Bolsonaro é também incoerente. Desde o início da pandemia, o presidente tem desafiado a ciência e a lógica em nome da retomada da economia, criticando as restrições instaladas em Estados e municípios para controlar o contágio. Na última quinta-feira (3), apelou para que governadores e prefeitos “abram em definitivo o comércio”. Essa tão sonhada normalidade só vai chegar quando uma vacina eficaz estiver disponível. O chefe do Executivo deveria, portanto, ser um de seus maiores defensores, até porque o Brasil investiu pesado em parcerias com centros de pesquisa para garantir dosagens. É um contrassenso também porque, ao mesmo tempo em que desdenha da imunização, que chegará com a chancela da comunidade científica, Bolsonaro nunca teve pudor em defender o uso da cloroquina, esta sim rechaçada por estudos técnicos.
A alegação do presidente de que o governo não pode impor nada a ninguém é tributária de um liberalismo de ocasião. Quando convém, como no caso do porte de armas, das cadeirinhas de bebê em veículos, do uso de máscara e agora da vacina, Bolsonaro é arauto das liberdades individuais. Mas quando essas liberdades esbarram em seu projeto ideológico, o laissez-faire logo dá lugar à mão pesada do Estado, como ao tratar de aborto e pautas identitárias.
Não se trata de “pegar alguém pelo braço”, como disse o vice-presidente Hamilton Mourão ao relativizar a fala de Bolsonaro. A Revolta da Vacina, em 1904, explodiu no Brasil em parte devido ao autoritarismo violento e vazio, sem conscientização sobre a importância das medidas para erradicar a varíola. Neste momento, o líder da nação tem que transmitir a nítida mensagem de que a imunização eficiente contra o coronavírus vai além de mera decisão individual. É um pacto coletivo pela erradicação da doença. Furar a cobertura vacinal não pode ser colocado no balaio das liberdades, sejam as de ocasião ou não, e o presidente deve liderar pelo exemplo. Tudo o que o Brasil não precisa neste momento é de uma nova revolta da vacina.
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