Se o serviço público fosse mais justo e rigoroso com aqueles que escolhem servir à população, não haveria compaixão para os peritos médicos flagrados pelo Jornal Nacional atendendo em clínicas particulares enquanto mais de 800 mil brasileiros ainda aguardavam atendimento no INSS para o recebimento do auxílio-doença.
A novela do retorno desses profissionais ao trabalho presencial já se estende por tempo demais, com a categoria tendo se recusado a voltar aos consultórios sob a alegação de que nem todas as agências se prepararam devidamente, com protocolos de higiene e estrutura devida, para encarar a realidade pandêmica.
Mas a Covid-19 parece não ser a protagonista das preocupações para alguns desses servidores quando se pode incrementar a renda com consultas particulares. “É. Segunda a sexta. Só que a agenda dele é sempre cheia." A fala é da secretária do endocrinologista Josélio Monteiro de Melo Júnior sobre a rotina de consultas do patrão, que atende em uma clínica particular de Brasília. Cobrando R$ 350 por cada uma delas.
O caso é que o médico é também perito do INSS que, até a data da exibição do telejornal, na segunda-feira (28), não havia ainda colocado os pés na agência em que trabalha. Sem apresentar atestado médico ou justificativa para a falta. Pelas normas, são exigidas dos peritos seis a oito horas de trabalho por dia ou a adesão a um regime de produtividade.
Naquela mesma data, segundo o governo, dos 915 peritos que deveriam ter retomado o atendimento presencial, 633 apareceram para trabalhar em todo o país. No Espírito Santo, a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia informou que, no último dia 28, 21 dos 24 peritos que deveriam estar em trabalho presencial compareceram às agências, o equivalente a 12,5% de ausência. Isso dez dias após a publicação do edital de convocação do governo federal que exigiu o retorno.
Não se deseja aqui condenar uma categoria inteira pelos maus exemplos reportados pelo telejornal. Mas é lamentável que eles ainda existam. E que, dentro da atual legislação do serviço público, pouco ou nada possa ser feito para conter esses abusos e fortalecer o seu próprio princípio, que é a prestação de serviços de qualidade ao público .
Também citada no Jornal Nacional, a médica Anne Gerymaia Oliveira de Melo Silva, cardiopediatra em Brasília, não esteve na agência em que atua como perita na semana passada com a justificativa de que, por ter filhos estudando em casa, estava fazendo a chamada perícia documental no próprio domicílio, com análises de atestados.
Contudo, foi confirmado que ela tem atendido em uma clínica particular e em um hospital público. Na situação dela, o servidor tem de declarar em documento que "não exercerá nenhuma outra atividade remunerada em caráter presencial durante esse período".
A cristalização da estabilidade mostra o seu veneno, nesses casos. Não se trata de carreira de Estado ou de alguma função sensível a transições de governos. A incompetência e a leniência dos maus profissionais devem ser punidas com a demissão. No quadro atual, a própria Secretaria de Perícia do INSS informou que os processos administrativos só são instaurados quando o afastamento ultrapassa 30 dias. É passar a mão demais na cabeça do mau servidor.
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A reforma administrativa entregue ao Congresso só olha para o futuro: o que já é um importante passo, dada a dimensão do anacronismo que ainda se apresenta em um serviço público ineficiente e paternalista. Poderia ser mais abrangente? Deveria. Mas, diante da pasmaceira política atual, já seria bom o suficiente que ela ao menos andasse. O que é pouco provável que ocorra ainda neste ano. O Brasil não se cansa de adiar suas prioridades.
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