Uma das preciosidades da memória audiovisual brasileira possível de ser encontrada no YouTube é uma entrevista de Raul Seixas a Glória Maria, nos anos 70, em plena orla do Rio de Janeiro. O maluco beleza, na ocasião, teve o carro avariado após ser levado pelas ondas durante uma ressaca que fez o mar avançar a avenida. Virou destaque da matéria do Jornal Nacional. Apesar do susto, o roqueiro soltou uma pérola: "Sou a favor, a onda tá certa. O que tá errado é esse negócio de aterro, de colocar edifício aí".
Fúria semelhante do mar está sendo testemunhada em Guarapari. Em menos de um mês, o avanço do mar provocou o desmoronamento de um trecho do muro e do calçadão da Praia da Areia da Preta. Uma equipe do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Espírito Santo (Crea-ES) já havia vistoriado o local em 14 de março e identificado que a movimentação marinha teve impacto na base do muro que ainda sustentava parte do calçadão, quando apareceram rachaduras com aberturas de até 40 cm. A estrutura acabou não resistindo.
A calçada que ruiu estava localizada em uma região turística, muito usada para caminhadas, mas também servia de passagem para a portaria de um condomínio que tem uma entrada de pedestres à margem da praia. Um espaço público, portanto, mas também associado ao patrimônio privado. Os moradores reclamaram que a prefeitura já deveria ter começado as obras de enrocamento (inserção de blocos de pedras), pois o local já apresentava sinais de desgaste há cerca de dez anos. A administração municipal informou que vai construir um muro de contenção no local, mas não há data de conclusão.
O avanço do mar em Guarapari não é algo excepcional ao longo do litoral brasileiro. A ciência defende que as mudanças climáticas são agentes dessas transformações que provocam aumento do nível do mar. E há o negacionismo. Contudo, é comprovado que a relação entre o oceano e o continente é naturalmente intensa, as erosões ao longo da região costeira capixaba são prova disso.
Portanto, o poder público será continuamente demandado a realizar intervenções, como engordamentos de faixas de areia, que nunca serão soluções definitivas. O mar seguirá avançando, obrigando que obras sejam refeitas periodicamente. E o que piora a situação é a histórica ocupação desordenada de terrenos à beira-mar.
Projetos imobiliários continuam avançando sobre áreas que deveriam ser protegidas. Ironicamente, uma regulamentação mais rígida garantiria a proteção das próprias obras e dos investimentos, em longo prazo. O poder público deveria cumprir um papel fiscalizador que, também por ironia, acaba ficando só no papel.
E, sobretudo, deve haver mais planejamento na execução de empreendimentos públicos ou privados à beira-mar. O engenheiro civil, oceanógrafo e mestre em engenharia ambiental Pablo Prata, ouvido por reportagem deste jornal, reforçou que o conhecimento do comportamento do litoral e dos pontos onde o mar e o continente interagem com mais veemência é imprescindível nas construções no litoral. As cidades litorâneas precisam de um reordenamento como forma de prevenção.
A ocupação humana sempre deve levar em conta as interações com a natureza, o homem não é soberano, é parte do ambiente. A engenharia e a arquitetura avançaram e continuam avançando, permitindo o desenvolvimento de construções imponentes até mesmo em terrenos desfavoráveis. Mesmo assim, ainda se peca no que é essencial: não conseguir usar o próprio conhecimento acumulado na hora de organizar a ocupação urbana. A onda, vale lembrar, está sempre certa. Quem escolhe ficar no seu caminho é que acaba suscetível ao erro.
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