Qualquer brasileiro que comece a assistir à série "Borgen", na Netflix, invariavelmente sente uma ponta de inveja. Totalmente perdoável, diga-se de passagem, diante das insistentes e extenuantes tramas políticas nacionais. Para quem não sabe do que se trata, o nome da atração faz referência ao apelido do Palácio de Christiansborg, onde estão sediados os três poderes dinamarqueses.
Sim, é uma série política escandinava, tão distante no mapa e nos princípios éticos, na qual o uso irregular — de uma forma excepcional, vale ressaltar — do cartão corporativo pelo primeiro-ministro é suficiente para balançar o governo. A transparência está tão arraigada à cultura política dinamarquesa que salta aos olhos o impacto que uma única compra — de valor elevado, é verdade — causa na opinião pública do país.
Já no Brasil, o cartão corporativo é uma caixa-preta. Em maio, o Estadão revelou que os gastos com cartão corporativo da Presidência da República, usado para custear despesas sigilosas de Bolsonaro, dobraram nos quatro primeiros meses de 2020, na comparação com o mesmo período do ano passado, no início do mandato.
O veículo entrou com uma ação para que houvesse o detalhamento dessas despesas, “de forma discriminada e acompanhada dos correspondentes documentos comprobatórios, inclusive aquelas classificadas como sigilosas”. Em setembro passado, o Ministério Público Federal em São Paulo (MPF) encaminhou parecer favorável à solicitação do jornal à Justiça Federal. Qualquer governo, de qualquer país, deveria ter o compromisso com essa prestação de contas com seu povo, mas no Brasil o acesso a esses gastos é restrito. Questão de segurança...
Mas há avanços, mesmo que rastejantes. Até o ano passado, a verificação de gastos de senadores, mediante reembolsos, era impossibilitada, já que o Senado não disponibilizava essas informações. Foi por meio desse procedimento que o site Metrópoles teve acesso à informação de que o senador Flavio Bolsonaro fez uso da cota para o exercício de atividade parlamentar para viajar até Fernando de Noronha a passeio no último feriadão.
A revelação jornalística se deu enquanto o filho do presidente ainda se encontrava no arquipélago com a esposa. A justificativa veio rapidamente: "O gabinete do senador Flávio Bolsonaro informa que houve um equívoco da equipe que emitiu as passagens para Fernando de Noronha. As passagens foram pagas pelo próprio senador, mas a equipe, por engano, pediu reembolso". O valor: R$ 1.617,66.
Ainda na sexta-feira (30), a assessoria do senador também informou que não havia compromissos oficiais do senador na ilha ou durante o feriado. Nesta terça-feira (03), contudo, a mesma equipe divulgou nota afirmando que a viagem ocorreu “a serviço”, um convite feito pelo Conselho Distrital da ilha. Ao que parece, um caso bem conveniente de dupla personalidade.
Enquanto o gabinete do filho do presidente se enrola nas explicações, o episódio mostra o quanto a transparência é indispensável, principalmente em um país no qual o patrimonialismo não consegue se dissociar de quem ocupa cargos públicos. O acesso ao poder causa uma confusão que já está arraigada à cultura política, na qual não existem fronteiras entre o público e o privado.
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O uso de dinheiro público para qualquer finalidade pessoal não pode permanecer normalizado. A cada denúncia, e o jornalismo profissional e vigilante está sempre alerta, há o reforço de que autoridades que se apropriam de recursos públicos estão agindo contra o bem comum. Quanto mais transparente for o país no trato de seu patrimônio público, mais perto se estará da Dinamarca de "Borgen".
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