O vírus pode ser democrático, mas a pandemia não é. Números já provaram que a Covid-19, embora tenha chegado ao Brasil com as classes média e alta, no retorno de viagens internacionais, tem se alastrado com mais rapidez nos bairros pobres. Quando se mergulha nos dados, outra faceta cruel revela-se: a população negra é a que mais sofre as agruras da crise sanitária e do consequente baque econômico.
É ela que lota filas em busca de auxílio nos bancos, míngua à espera de cestas básicas. A letalidade do novo coronavírus entre pretos e pardos é um sinal especialmente gritante da desigualdade. Não é uma particularidade do Brasil. À guisa de exemplo, nos EUA, embora componham 13% da população, os negros representam 60% das mortes. Na Inglaterra, a probabilidade de um negro morrer da doença é quatro vezes maior do que a de um branco.
No Espírito Santo, a diferença de apenas 4% entre brancos e negros infectados salta para 18% no índice de óbitos. Com o recorte de gênero, a discrepância é ainda maior: brancas e negras apresentam diferença de 24% no índice de mortalidade, segundo dados da Sesa compilados por estudo de Rasley e Gustavo Forde, este doutor e pesquisador da Ufes na área de relações étnico-raciais.
A disparidade não é uma surpresa, dado o histórico de marginalização da população negra, mas o tamanho do abismo assombrou até estudiosos do tema. O motivo, diriam os apressados, é a desigualdade socioeconômica. Pretos e pardos formam 75% da população mais pobre, enquanto 70% dos mais ricos são brancos, segundo o IBGE. São os negros, portanto, que mais penam com serviços de saúde deficientes, ônibus lotados, moradias precárias, saneamento básico inexistente.
Tudo isso é fato, mas apenas toca a superfície. Seria suficiente para explicar uma assimetria na taxa de contaminação, o que não é o caso. Por enquanto. Para elucidar por que a Covid-19 é mais mortífera para os negros, não há como excluir o racismo da equação.
Em 2006, ano em que foi criada a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, o Ministério da Saúde admitiu a existência de “práticas cristalizadas” de racismo no sistema público de saúde. Esse preconceito institucional, reflexo da sociedade, deságua em atendimento relapso, diagnósticos incompletos, exames que deixam de ser feitos, doenças nunca tratadas. Como políticas públicas para solucionar o problema foram negligenciadas, as mortes de pretos e pardos explodem nesta pandemia.
Da contabilidade de pessoas escravizadas ao montante de beneficiários de programas sociais, agora chegando ao somatório de mortos pelo coronavírus, já passou da hora de a sociedade parar de tratar a população negra como números. Muitos, mas abstratos. É preciso ação real, contínua e profunda por justiça e equidade.
Em crônica publicada em jornal seis dias após aquele 13 de maio de 1888, Machado de Assis ilustrou, por meio de um burguês e o escravizado Pancrácio, as falhas morais de uma sociedade que muda para que tudo fique como sempre foi. Nesta semana em que se comemorou os 132 anos do fim da escravidão no país, sem a garantia de nenhum tipo de inclusão, tem-se que a visão que subjuga, menospreza e oprime os negros ainda é palpável. Um vírus invisível revela o que sempre esteve diante dos olhos, mas que os piores cegos nunca quiseram ver.
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