Chamou a atenção nos últimos dias a magnitude de uma operação articulada pela Polícia Civil do Espírito Santo para desbaratar uma intrincada organização criminosa que se espalha pelo Brasil. Estima-se que o grupo teria movimentado mais de R$ 800 milhões, ao funcionar como “prestadora de serviços” de lavagem de dinheiro para outras quadrilhas, com braços até mesmo nos Estados Unidos e na China. É preciso, em primeiro lugar, reconhecer a determinação dos investigadores, que pode culminar com a repatriação de montante significativo de dinheiro.
Mas igualmente chamativo é o fato de que o megaesquema poderia ter sido evitado, ou ao menos ter seu poderio podado, se não fosse a “precariedade do sistema atual de emissão de identidades civis”, nas palavras do próprio Ministério Público. Isso porque o golpe era realizado por meio de empresas de fachada e fictícias, criadas a partir de identidades falsas, expedidas pelo Setor de Identificação da Polícia Civil.
A brecha não é de responsabilidade da PC, mas da fragilidade da burocracia. Sem efetivo suficiente para que unidades da Polícia Técnico-Científica sejam mantidas no interior do Estado, algumas prefeituras têm convênios com a Polícia Civil para evitar o deslocamento dos moradores até a Região Metropolitana ou cidades maiores. Funcionários das administrações municipais, então, são os responsáveis por preencher os formulários de solicitação das identidades. Criminosos aproveitam-se justamente desse esgarçamento no controle.
No caso da quadrilha desmontada na última semana, uma servidora de Afonso Cláudio foi uma das pessoas detidas, por suspeita de auxiliar as organizações criminosas na emissão de documentos de identidade falsos para abertura das empresas de fachada, que eram utilizadas no esquema de lavagem de dinheiro. A funcionária solicitava as identidades com informações de certidões de nascimento falsas, mas com fotos de pessoas verdadeiras. Até o momento, não há qualquer indício de envolvimento da Polícia Técnico-Científica na fraude.
Os números que cercam a chamada Operação Piànjú dão mostras da dimensão do trabalho dos investigadores, que consumiu dois anos, para desarticular a suposta quadrilha: foram cumpridos 126 mandados judiciais, entre prisão, busca e apreensão, sequestro de bens e bloqueio de contas bancárias, no Espírito Santo, São Paulo, Ceará e Alagoas. Nos bastidores, a missão envolveu mais de 100 agentes de órgãos como as polícias civis do Estados envolvidos, promotores de Justiça e membros do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado, do MPES.
Empresas de veículos e embarcações capixabas, além de companhias de fachada, participariam das movimentações financeiras ilegais para corporações dos Estados Unidos e China — daí o batismo da operação de Piànjú, “fraude” em mandarim, segundo a PCES. Um detalhe que ilustra como o crime organizado é profundo, espalhando seus tentáculos por onde encontra brechas, é que parte dos recursos enviados ao exterior teriam partido de corporações envolvidas na Operação Lava Jato ou em crimes de sonegação do ICMS em outros Estados.
O efeito deletério do megaesquema recai diretamente sobre verba pública. Suspeita-se que parte dos recursos tenha vindo de licitações de serviços como de coleta e tratamento de lixo, o que reforça ainda mais a importância da desarticulação da quadrilha. A grandiosidade das supostas fraudes, contudo, são mais um alerta para a necessidade de aprimorar os sistemas de emissão de documentos, base para prejuízos incalculáveis. Neste caso, o empenho de agentes públicos foi capaz de dissipar a quadrilha, mas outras apenas começam a nascer nas brechas do controle. É preciso cortar o mal pela raiz, para que não sejam necessários outros dois anos de trabalho investigativo até sua desarticulação.
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