Enquanto o mundo assiste a uma segunda onda da Covid-19, com números recordes em alguns pontos do planeta, a notícia de que a primeira vacina pode começar a ser aplicada já na próxima semana no Reino Unido é um respiro de alívio. A chegada das doses às pessoas com menos de um ano de pandemia é prova do esforço sobre-humano que tem sido empenhado por comunidade científica, governos e agências reguladoras para superar a tragédia do novo coronavírus. No Brasil, no entanto, a postura claudicante do Ministério da Saúde acende alerta de que o país pode ficar para trás na corrida pela imunização.
As respostas têm sido lentas e vagas, incompatíveis com a gravidade do momento. Nesta semana, a pasta finalmente anunciou o cronograma de vacinação, estabelecendo grupos prioritários que receberão as primeiras doses. Mas frustrou expectativas ao afirmar que a campanha terá início apenas em março, atingirá apenas metade da população ao longo de 2021 e poderá deixar imunizantes aprovados de fora, como o das farmacêuticas Pfizer e BioNtech.
A grande celeuma é que o produto precisa ser acondicionado em baixíssimas temperaturas, a -75 °C. O Ministério da Saúde não descarta o imunizante, mas continua torcendo por vacinas termoestáveis, que demandam refrigeração entre 2° C a 8° C, obtida em geladeiras comuns. À primeira vista, o argumento soa plausível, já que a necessidade de infraestrutura especial de armazenamento poderia representar obstáculos à distribuição das doses a pontos mais afastados do país. Mas não é bem assim.
A Pfizer alega que, ciente dos desafios de logística, desenvolveu uma embalagem que mantém a vacina na temperatura ideal por 15 dias. Além disso, durante cinco dias as doses poderiam ficar em refrigeradores comuns. A resistência do governo federal torna-se ainda mais inexplicável uma vez que o Conselho Nacional de Climatização e Refrigeração, que agrupa as maiores entidades do setor no Brasil, garantiu que o país tem capacidade de armazenar doses a -75 °C. A cada dia que o Ministério da Saúde demora para tomar a decisão, perde posições na fila para conseguir a vacina. Outros países da América Latina em condições similares às brasileiras já fecharam acordos e têm preferência.
As lacunas do plano de imunização brasileiro, contudo, vão além do imbróglio com a Pfizer. Enquanto o ministro Eduardo Pazuello fala em no máximo três vacinas ideais para o Brasil, outros países criaram leque extenso de possibilidades. O Canadá, por exemplo, garante uma proporção de nove doses por cidadão. O governo federal aposta suas fichas no imunizante da AstraZeneca, em parceria com a Universidade de Oxford, que pode demorar a chegar devido a erros nos testes.
Outros acordos foram fechados por Estados, como a Sputnik V, no Paraná e na Bahia, e a Coronavac, em São Paulo, que já avisou ter condições de começar a aplicação em janeiro, criando realidades distintas dentro do território brasileiro. A mesma desarticulação nacional vista no controle da pandemia replica-se agora na aquisição das vacinas e outros insumos. Fabricantes já alertam pode haver atraso na entrega das essenciais seringas e agulhas devido à falta de encomendas do governo federal, que parece mais uma vez terceirizar responsabilidades, deixando na mãos dos Estados a tarefa.
O Espírito Santo já se antecipou e adquiriu seis milhões de kits de seringas e agulhas, além da já ter preparado as diretrizes de funcionamento, agendamento e outras questões operacionais da aplicação da vacina, estando pronto para iniciar a imunização em janeiro. Mas negociações diretas com os Estados são desperdício de dinheiro público, já que a compra em grandes lotes poderia baratear os preços. O Brasil deveria, inclusive, ter capitaneado compras em bloco com países vizinhos.
As credenciais de especialista em logística de Pazuello, arranhadas com os quase sete milhões de testes RT-PCR encalhados às vésperas da data de vencimento, serão mais do que necessárias neste momento, em que o Brasil precisa colocar em funcionamento uma engrenagem monumental e inédita para vacinar sua população. A imunização eficiente é o passaporte de saída do país da crise. Quanto mais rápida e abrangente, mais vidas serão salvas e maiores serão as chances de uma retomada acelerada da economia, esta sim uma bandeira de Jair Bolsonaro.
No entanto, em vez de investir pesado naquela que é a única esperança de volta à normalidade, estimulando a adesão à vacinação, o presidente insiste na hostilidade à ciência, ao dizer que não pode ser cobrado caso algum imunizante apresente efeito colateral. À medida que outros países seguirem o Reino Unido e começarem a aplicar as doses em seus cidadãos, posturas erráticas como essas ficarão cada vez mais insustentáveis.
Este vídeo pode te interessar
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.