“O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele.” Muita água (suja) já rolou desde que o presidente Jair Bolsonaro fez o infeliz comentário há mais de uma semana; é quase uma outra vida diante das sucessivas mudanças de discurso sobre o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus no Brasil desde então.
Acontece que a afirmação do presidente, em mais um de seus arroubos de sabedoria de banco de praça, revela muito mais sobre nossas fragilidades do que sobre virtudes. O brasileiro não é um super-herói, imune às tragédias sanitárias que fazem parte do seu cotidiano.
Dados do Ministério de Desenvolvimento Regional referentes a 2018 indicam que apenas pouco mais da metade da população brasileira (53,2%) possui acesso à rede de esgoto. No ano anterior, o percentual era de 52,4%, o que revela um avanço de apenas 1,5% neste que é um dos principais parâmetros civilizatórios. É um número elevado de pessoas que, se não mergulham literalmente no esgoto, são obrigadas a conviver com toda a desumanidade que essa carência gravíssima de infraestrutura impõe.
E é inútil insistir que essa catástrofe passa incólume, sem afetar dramaticamente a qualidade de vida das pessoas. Reportagem da Folha de S. Paulo de outubro passado, com dados fornecidos pelo próprio Ministério da Saúde, comprovou o impacto da falta de saneamento básico na própria gestão do setor. Somente nos últimos cinco anos, mais de R$ 1 bilhão foi gasto com doenças decorrentes do contato com a água contaminada. Bem diferente da afirmação do chefe de Estado.
E é justamente a falta de acesso à água limpa que acentua os riscos de contágio do novo coronavírus pelos mais pobres. É por isso que a fala de Bolsonaro soa ainda mais despropositada, desconectada da realidade. Esgoto não coletado e não tratado é fonte de enfermidades em qualquer circunstância.
A pandemia de Covid-19 tem sido brutal em todo o planeta, mas no Brasil encontrou um país sem saúde fiscal e com infraestrutura debilitada. É como o próprio corpo humano, mais suscetível a doenças quando cuidados com a saúde são deixados de lado.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, a cada US$ 1 investido em saneamento, US$ 4,3 são poupados em gastos com a saúde. Há relação, inclusive, com avanços na segurança pública. Saneamento básico reforça a própria cidadania. Por isso, o governo não pode continuar deixando escapar a chance de promovê-lo, com investimentos da iniciativa privada.
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