A falta de convergência nas políticas de enfrentamento à Covid-19 causou nova tempestade, impondo ao país mais um infortúnio em plena pandemia. Jair Bolsonaro descarta o segundo ministro da Saúde em menos de um mês, não impunemente, mas por discordâncias cruciais e inaceitáveis para qualquer governante.
Se Luiz Henrique Mandetta foi fritado por se alinhar às recomendações científicas e acumular credibilidade, algo raríssimo entre os atuais ocupantes na Esplanada dos Ministérios, e por isso acabou demitido, Nelson Teich tentou fazer uma jornada mais ortodoxa dentro do bolsonarismo. Foi escolhido para ser uma ponte para a abertura econômica, mas não conseguiu resistir aos desmandos, insanidades e humilhações públicas. Não foi capaz de ser o testa de ferro das absurdas convicções do presidente da República e pediu para sair. E foi justamente ela, a cloroquina, a semeadora da discórdia definitiva.
Bolsonaro tem sido a própria encarnação da anticiência: a incapacidade de compreensão do que é empírico, do que tem resultado comprovado, o coloca em uma redoma de obscurantismo da qual não faz o mínimo esforço para sair. Se é contrariado, sente-se acuado e reage com virulência.
Não é mero autoritarismo, é um culto orgulhoso à própria ignorância. O embate com jornalistas nesta semana, ao ser indagado sobre a Argentina registrar menos mortes que o Brasil, é exemplar, ao expor o seu completo desconhecimento no trato com dados e estatísticas. No fim, acaba apelando sempre para a ideologia. Quem discorda de sua compreensão limitada da realidade torna-se imediatamente comunista. Uma perseguição de fazer inveja ao macarthismo, em pleno 2020.
A cloroquina, que tinha sido jogada para escanteio nos discursos bolsonaristas, foi recolocada sob os holofotes quando o governo enfrenta uma crise política com potencial de fazer o presidente encarar um processo de impeachment. A falta de timing de Bolsonaro é gritante: justamente quando há cada vez mais consenso, entre autoridades médicas e científicas ao redor do mundo, de que o medicamento tem se mostrado incapaz de tratar a Covid-19. Com o agravante da suspeita de estar provocando quadros de arritmia graves nos pacientes, algo que tampouco tem comprovação científica até o momento, mas reforça a necessidade de precaução.
Teich fez o que qualquer médico com compromisso ético faria: recusou-se a protocolar o seu uso irrestrito. Mas acabou sucumbindo à pressão do presidente. Os desatinos tornaram a permanência de Teich, também ele um homem da ciência, insustentável. Não significa dizer que sua passagem pela pasta tenha tido alguma relevância: a falta de comando foi evidente, com Estados e municípios sem uma coordenação central. Mas o silenciamento sufoca.
Antes do pronunciamento sobre a sua saída, nesta sexta-feira (15), Teich teria dito, segundo a CNN, que não mancharia sua história por causa da cloroquina. Bolsonaro, agora, tem o desafio de encontrar alguém para o posto que não tenha esse tipo de preocupação com a própria reputação.
Em um Brasil ideal, a maior calamidade sanitária desta geração seria encarada pelo governo federal com mais seriedade. Um presidente não pode tratar como descartável o chefe da pasta que protagoniza o combate à pandemia. Um ministro da Saúde precisa ter autoridade, delegada por confiança pelo próprio chefe da nação. É preciso dar espaço para a equipe trabalhar, desenvolvendo planos emergenciais e coordenando ações com os entes federativos.
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Integração nunca fez tanta falta, assim como transparência e credibilidade. Bolsonaro continua firme no seu processo de isolamento, elevando o grau de insalubridade do seu governo a qualquer tipo de racionalidade.
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