O tema da redação do Enem deste ano pegou muitos estudantes de surpresa, mas não só eles: a reação das pessoas nas redes sociais também mostrou que a dúvida sobre o que abordar e argumentar no texto foi além daqueles que estão tentando ingressar no ensino superior. "Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil" foi uma escolha que ganhou ainda mais destaque diante das tensões provocadas pela declaração do presidente Jair Bolsonaro de que a prova deste ano teria "a cara do governo".
Se a escolha do tema teve mesmo a identidade bolsonarista, como prometeu o presidente, isso também surpreendeu pelo caráter social pouco comum às principais pautas do seu governo. É bem verdade que foi uma escolha mais neutra do que os temas ligados à agenda identitária que tanto incomoda seus seguidores, mas também é um mote capaz de suscitar críticas sobre a incapacidade governamental de democratizar a cidadania.
Os dados que servem para embasar o problema são de 2015, quando o IBGE apontou que cerca de 3 milhões de brasileiros não tinham nenhuma documentação que provasse a sua existência. Mas o que tem sido feito de lá para cá para tirar essas pessoas da margem do Estado?
Um dos grandes desafios da pandemia, ainda em 2020, foi fazer o auxílio emergencial chegar às mãos de quem precisava. O drama dessa massa sem nem sequer a certidão de nascimento teve o devido destaque na imprensa, cobranças foram feitas, houve avanços na atualização de cadastros.
Mas não são somente os benefícios sociais que não chegam a quem é invisível para o poder público: são crianças que não têm acesso à escola, são adultos alijados do mercado formal de trabalho. São pessoas sem acesso aos serviços básicos de saúde. Como o registro civil no país é progressivo, a falta da certidão de nascimento, com gratuidade garantida por lei, impede o acesso a todos os demais documentos. A prática da cidadania fica impossibilitada e violada.
O podcast "O Assunto", comandado pela jornalista Renata Lo Prete, abordou em setembro passado o drama dos brasileiros sem registro em uma entrevista com a também jornalista Fernanda da Escóssia, autora do livro "Invisíveis - Uma Etnografia sobre Brasileiros sem Documento". Em sua pesquisa, Fernanda pôde constatar in loco a dificuldade encontrada por esses brasileiros na hora de regularizar a situação, um novelo burocrático que precisa ser simplificado. O Brasil tem o dever de ir atrás desses brasileiros que ainda caminham contra o vento, para garantir a eles o primeiro degrau de dignidade na vida em sociedade. O Censo demográfico, tão castigado pela falta de verbas, mostra-se ferramenta essencial para mapear esses cidadãos invisíveis.
A falta de um documento é a primeira vulnerabilidade, acentua a miséria. É a fome que não se sente só no estômago, é a fome de cidadania. Não se pode ignorar essa invisibilidade. Diante do espanto de tanta gente com o tema da redação deste ano, fica evidente que a escolha foi acertada. Os cidadãos com nome e sobrenome, buscando mais conhecimento, têm mais uma cobrança a fazer de seus candidatos na hora do voto, o exercício máximo de sua cidadania.
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