Não existe no Brasil somente uma epidemia de negacionismo, no sentido de colocar em xeque qualquer medida mais racional e cientificamente embasada de enfrentamento da pandemia. Associada a essa doença que contamina o bom senso, há uma outra cujo principal sintoma é o descaso puro e simples, desvinculado de ideologia ou de alguma justificativa mais organizada. Nem mesmo a escalada assustadora das mortes no país, onde já virou rotina o registro diário em torno das 4 mil óbitos, consegue abalar a indiferença e promover alguma mudança de comportamento. A vida segue normal, sem percalços.
Esse tipo de atitude despreza a própria noção de vida em sociedade. E não se trata de ignorar uma parcela considerável da população que precisa sair de casa para garantir o sustento, gente que não tem a opção de trabalho remoto, em função da natureza da própria ocupação.
Os profissionais de saúde são o exemplo mais extremo: a presença de médicos, enfermeiros, técnicos e assistentes de enfermagem, fora o corpo administrativo e auxiliar de hospitais e unidades de saúde, tem sido exigida há mais de um ano na linha de frente. E eles estão exaustos, e não é só por conta da rotina extenuante. São eles também as testemunhas mais próximas dessa doença avassaladora e imprevisível, que já matou cerca de 350 mil brasileiros.
É preciso acreditar no que eles dizem. É preciso ao menos levar em consideração os relatos cada vez mais assustadores sobre a superlotação dos leitos de UTI, sobre a iminência de escassez de medicamentos para a sedação, sobre a ineficácia e os riscos do tratamento precoce. Quem está na linha de frente não faz suposições, não faz especulações sobre a gravidade da pandemia. Esses profissionais seguem, plantão após plantão, registrando com os próprios olhos as mazelas físicas dos quadros mais graves da doença. Deveria ser obrigatório a cada brasileiro prestar atenção nos relatos de quem está dentro dos hospitais.
"Se você não acredita que o CTI está cheio, eu não posso fazer mais nada para convencer você", desabafa o médico Marlus Muri Thompson, do Hospital Evangélico de Cachoeiro de Itapemirim, em um vídeo feito para uma reportagem deste jornal que reuniu depoimentos de profissionais de saúde no Espírito Santo.
Beatriz Rivieri Colodette, enfermeira da Santa Casa de Misericórdia do mesmo município, fez também um relato sincero do que encontra diariamente no trabalho. "A gente vem trabalhar porque sabe que os pacientes precisam da gente. Mas com o cansaço e a exaustão que estamos, a vontade é de não vir. Os pacientes estão em estado muito grave, às vezes eles estão conversando com a gente e, de repente, eles ficam gravíssimos".
O esgotamento profissional é também um indício das dificuldades encontradas para a contratação desses profissionais, registradas no início do mês de março em pelo menos seis Estados, inclusive o Espírito Santo. Médicos intensivistas e profissionais de Enfermagem são exigências para a abertura de novas vagas de UTI, e a falta de disponibilidade no mercado afeta diretamente as ações de enfrentamento da doença. A carência de recursos humanos esbarra na impossibilidade de formação emergencial desses profissionais.
A esperança para quem trabalha na linha de frente do combate à doença são os resultados de levantamentos preliminares que mostram que a vacinação da categoria, iniciada em janeiro deste ano, começa a ter efeito, com a redução de casos e mortes entre profissionais de saúde. A redução da vulnerabilidade se reflete também em menos danos psicológicos de quem tem de encarar a doença diariamente para tentar salvar vidas, sem colocar a própria em risco.
Esse front da saúde precisa de condições de trabalho dignas diante da carga exigida de cada um desses profissionais. A pandemia não dá sinais de melhora, e as demandas provocam um esforço sobre-humano. Já seria uma grande vitória para médicos, enfermeiros, técnicos e assistentes que a população se sensibilizasse com o desgaste físico e emocional dessas pessoas, que têm famílias, medos e esperanças, como qualquer outra. Não são super-heróis, embora mereçam o título. O mínimo que cada cidadão pode fazer é ouvir a seriedade desses desabafos e fazer o máximo possível para se prevenir dessa doença.
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