A decisão da Ford pelo encerramento das atividades no Brasil tem seu contexto mais óbvio, pelo viés da macroeconomia mundial, inserido nas transformações avassaladoras deste milênio. O modelo de negócios das montadoras está passando por uma reestruturação global, diante de inovações tecnológicas e do próprio modo de produção.
Os carros elétricos deixaram de ser um vislumbre de visionários e passaram a ser uma realidade, conectada com anseios crescentes de eficiência e sustentabilidade. E os carros autônomos seguem em alta velocidade por essa mesma autoestrada para se viabilizarem. Revoluções que se dão fora das linhas de montagem tradicionais, dentro de empresas com perfil de inovação que são a cara do século XXI, como a Tesla e a Google.
No Brasil, a Ford atuava há mais de cem anos. A montadora mantinha atualmente fábricas em Camaçari (BA) e Taubaté (SP), para automóveis da própria marca, e em Horizonte (CE), para jipes da Troller. O mercado brasileiro se tornou menos rentável na última década, com a recessão, e a pandemia veio sacramentar os maus resultados no país.
O setor automotivo fechou o ano de 2020 com 65% de ociosidade, um percentual que explica decisões anteriores à esta tomada neste início de 2021 pela Ford. Em dezembro, a Mercedes-Benz já havia anunciado o encerramento da produção de automóveis no Brasil.
O cenário de transformação mundial, portanto, não redime o Brasil de suas responsabilidades. A tragédia econômica brasileira dos últimos anos tem afastado os investimentos, em um país com tributação elevada e complexa, em constante instabilidade política que atrasa a implementação de reformas capazes de melhorar o ambiente de negócios. Falta infraestrutura mínima. O Brasil se tornou um país de renda estagnada, o que fragilizou seu mercado interno. E é nesse ponto que a crise brasileira se encontra com a remodelação das montadoras em nível global.
A nova estratégia da Ford, anunciada em 2018, busca a ampliação de investimentos em SUVs, picapes e utilitários comerciais, automóveis mais rentáveis. No Brasil, a planta de Camaçari se destinava à produção do Ka e do EcoSport, dois modelos mais simples ou defasados em relação ao novo posicionamento da marca, que já havia encerrado a produção de sedãs tradicionais como Fusion, Fiesta e Taurus nos Estados Unidos. Enquanto isso, a Argentina possui uma cadeia de produção que se encaixa no novo foco da montadora, em função de um mercado interno consumidor desse tipo de veículo. E também pelos investimentos na produção.
O Brasil ficou para trás porque já estava atrás. Não são somente os 5 mil postos de trabalho diretos perdidos que devem ser lamentados, mas toda a cadeia no seu entorno. A indústria automotiva depende cada vez mais de inovação, é importante estar em um país que incentive isso como política de Estado, com educação de qualidade. Sem um olhar cuidadoso para a qualificação profissional e para a pesquisa em tecnologia, não se sai do lugar, não se inova.
As máquinas desligadas da Ford no Brasil são um revés que vai muito além da economia, porque deixam explícitos os erros de estratégia de um país que tinha tudo para ter uma industrialização mais robusta e moderna, com produtividade a todo o vapor. Acaba sendo sempre um país de possibilidades perdidas, que insiste em torrar recursos para se tornar competitivo de maneira artificial, com renúncias fiscais astronômicas. A própria Ford acumulou desde 1999 R$ 20 bilhões em incentivos no Brasil.
Quando Bolsonaro justifica a debandada da Ford somente pelo aspecto dos subsídios fiscais, minimiza a situação e, como de costume, não assume as próprias responsabilidades. Que não são somente dele, é preciso fazer justiça. A falta de um projeto de país que se conecte com o futuro vem de muito antes, só não pode continuar persistindo.
As transformações globais que levaram a Ford a mudar sua estratégia são um alerta que deve ser encarado com seriedade, sob o risco de mais perdas econômicas e graves danos sociais. A Ford, aquela que estabeleceu o fordismo como modo de produção dominante no século XX, busca se adaptar ao século XXI. O recado é claro: o Brasil precisa fazer o mesmo.
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