"Já chorei, esperneei, estou anestesiada. Sinto revolta, enjoo, raiva, não sei explicar. Tinha a ferida do meu filho. Agora, bateram no mesmo lugar. Já não ia parar de doer com a partida do Gabriel. Com a do Gilson, não vai parar de sangrar nunca." Não há como iniciar este editorial sem trazer o desespero da cuidadora de idosos Erina Pereira da Silva, 43 anos. Suas palavras dão a real dimensão de sua dor, difícil de ser reproduzida por quem não está atravessando um momento tão penoso quanto o dela.
Erina perdeu o marido e o filho em acidentes de trânsito em um intervalo de quatro meses, mortes que seguiram um roteiro de coincidências trágicas. A primeira delas é a mais evidente, o cenário. Tanto o marido, Gilson Rodrigues da Silva, de 49 anos, quanto o filho Gabriel da Silva Rodrigues, de 23, perderam a vida em acidentes na Rodovia do Sol, em Vila Velha. Como residiam em Barramares, a rodovia era uma rota inevitável para ambos. Enquanto Gabriel foi morto na altura de Ulysses Guimarães, quando estava trabalhando como motoboy, Gilson foi atingido no trajeto entre sua casa e o sítio da família, no bairro Village do Sol, também às margens da rodovia.
É uma crônica da violência no trânsito triste demais, que mistura vulnerabilidade e impunidade. Gabriel, de moto, e Gilson, de bicicleta, ocupavam duas das partes mais frágeis da cadeia do trânsito. Testemunhas do acidente de Gabriel, em maio, afirmaram que o carro que provocou a morte do jovem vinha em alta velocidade antes de sofrer um capotamento. A fragilidade de quem ocupa uma motocicleta em um acidente nessas circunstâncias é incontestável.
No caso de um ciclista, a exposição ao perigo, quando motoristas não dirigem com segurança, também tende a ser implacável. A informação de pessoas que testemunharam o acidente de Gilson é de que ele foi atropelado por um veículo.
Os acidentes envolvendo motos seguem fazendo vítimas demais. Em agosto deste ano, de acordo com dados do Observatório de Segurança Pública do Espírito Santo, foram 271 vítimas fatais, um aumento de 30,3% em relação ao mesmo mês do ano passado. Nas estatísticas envolvendo bicicletas, números do primeiro semestre de 2020 apontavam 3 acidentes envolvendo ciclistas por dia no Estado, de acordo com a média de atendimento diário do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). E os registros das mortes não param.
No início deste mês, um ciclista que seguia pelo acostamento da ES 010, em Aracruz, também morreu após ser atingido por um veículo, cujo motorista perdeu o controle da direção. No dia 14, uma menina que estava na cadeirinha da bicicleta da mãe perdeu a vida após ser atropelada por um ônibus, em Linhares.
Mortes que se sucedem por imprudência. Falta, cada vez mais, uma noção do papel de cada um para a segurança no trânsito, que precisa urgentemente passar por um choque civilizatório. E, no caso das bicicletas, esses acidentes reforçam a necessidade de investimentos em infraestrutura urbana, para evitar que disputem espaço com veículos nas vias mais movimentadas.
Em mais uma situação que une os acidentes que mataram o marido e o filho de Erina, nenhum dos motoristas envolvidos prestaram socorro. A Polícia Civil informou que o motorista do caso Gabriel foi identificado, interrogado e "atualmente o inquérito encontra-se aguardando a finalização de outros procedimentos para a sua conclusão", mas a família reivindica, com razão, mais celeridade no processo. Em maio, estava vigente havia quase um mês o Novo Código de Trânsito que endureceu as penas para os casos de acidentes com morte envolvendo motoristas alcoolizados, mas nesse caso não foi divulgada informação sobre a situação do condutor.
Já sobre o atropelamento de Gilson, o órgão informou que o caso segue sob investigação da Delegacia Especializada em Delitos de Trânsito (DDT), que instaurou um Inquérito Policial (IP), para identificar e localizar o motorista.
Erina vive uma tragédia pessoal, com a destruição de sua família, marcada por horríveis coincidências. Mas infelizmente não está sozinha, são milhares de famílias desfeitas pela brutalidade do trânsito, dia após dia. Mortes banais que acabam banalizadas pela recorrência, mas provocam um vazio desmedido na vida naqueles que ficam. Vale sempre repetir, o trânsito precisa ser urgentemente humanizado. Mas, enquanto isso não acontece, exige-se que a impunidade também deixe de ser uma coincidência.
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