Lamentavelmente, este editorial está sendo publicado nesta terça-feira (18) não somente por ser hoje o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, o que já seria motivo suficiente para alertar sobre a vulnerabilidade infantil a esse tipo de violência no país. Em uma trágica coincidência, um crime em Ecoporanga trouxe de volta a mesma dor e indignação que, há 48 anos, cercaram o assassinato de Araceli Cabrera Crespo, em Vitória, a menina que se tornou um símbolo nacional na luta pela segurança das crianças e inspirou a data.
Quase 50 anos depois, casos assim têm sido testemunhados com uma recorrência assustadora. Sobretudo com o envolvimento de pessoas do círculo familiar das vítimas. Em Ecoporanga, uma menina de 6 anos foi vítima de estupro e agressões. O algoz estava dentro de casa: o padrasto da criança é o suspeito de ter cometido a atrocidade e está preso.
Agressões, violência sexual, assassinatos... em março, uma criança de dois anos foi agredida durante uma festa de aniversário em Cariacica, pelo avô. Na última sexta-feira (14), no mesmo município, uma mulher foi presa por dar chineladas na filha de dez meses. E já tinha um histórico: em 2019, havia abandonado o filho de oito anos no Terminal de Itacibá com uma justificativa que, para ela, pareceu natural: "Me cansei dele". A criança alegou maus-tratos e a mãe acabou presa.
A naturalização da violência no seio familiar espanta, mas investigar suas raízes como fenômeno social tornou-se urgente. Porque as agressões do dia a dia não raro se transformam em tragédias.
E não são crimes restritos a classes sociais menos favorecidas, como a morte do menino Henry Borel, que ganhou vulto neste ano, mostrou. A mãe do garoto e o padrasto, o vereador do Rio de Janeiro Dr. Jairinho, foram presos pela suspeita de homicídio duplamento qualificado, com emprego de tortura e sem chance de defesa para a vítima. O histórico de agressões sofridas por Henry que culminaram na sua morte é exemplar de uma situação que se repete em muitos lares, com final trágico.
Poucos dias antes da prisão do casal no Rio, o Espírito Santo registrava, em 2 de abril, a morte do menino Paulo Antônio Marinho Batista, de 8 anos, no Morro do Romão, na Capital. Na semana passada, a conclusão das investigações da Polícia Civil apontou que o menino foi espancado até a morte pelo padrasto, que está foragido. Mudam os personagens, repete-se o enredo.
No Congresso, tramita um projeto de lei que aumenta a pena para crimes de maus-tratos contra crianças, que teve aprovação rápida na Câmara na esteira da repercussão do caso Henry e agora está no Senado. A iniciativa do legislador, atento a uma mazela social tão evidente, merece ser elogiada, mas a repetição de tragédias exige também um entendimento mais profundo, capaz de direcionar políticas públicas mais eficientes no combate a esse tipo de violência doméstica.
No ano passado, um levantamento feito pela Globonews mostrou que o Brasil atingiu o maior número de denúncias de violência contra crianças e adolescentes desde 2013, com 95.247 registros no Disque 100, programa do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Em 67% das denúncias, o cenário das agressões foi a própria casa onde vivem a vítima e o suspeito.
Recentemente, em sua coluna neste jornal, o especialista em Segurança Pública Henrique Herkenhoff sugeriu que é necessário um olhar mais atento para os novos arranjos familiares, nos quais, com a superação do casamento indissolúvel que até décadas atrás era a regra, filhos de uniões anteriores passaram a conviver com os novos parceiros de seus pais e mães.
As estatísticas mostram essa mudança na estrutura familiar, e de fato isso precisa ser estudado sistematicamente, sem apegos ideológicos ou religiosos: é preciso tratar o assunto com pragmatismo, para contribuir até mesmo na formulação de novas leis.
A violência contra a criança não se manifesta somente no seio familiar, como no próprio caso Araceli, mas quando ocorre dentro dele a perplexidade se une à indignação. Em 2018, a morte dos irmãos Kauã e Joaquim, queimados pelo pai, o ex-pastor Georgeval Alves Gonçalves, causou esse assombro perturbador. Assim como a morte de Isabella Nardoni, em São Paulo, em 2008.
Os exemplos são muitos e se sucedem com uma frequência que atordoa pelo tamanho da covardia. Mas é importante que a sociedade não se anestesie e não se acostume com essa tragédia. É fundamental permanecer atenta, cobrando de seus representantes no Congresso a formulação de leis que mantenham as crianças vivas, crescendo em lares sadios. Algo que deveria ser elementar. Mas ainda não é.
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