A PEC do voto impresso foi barrada na Câmara ao não ser capaz de atingir os 308 votos necessários para a aprovação de projetos que mudam o texto constitucional. Quando se restringe a votação aos dez parlamentares da bancada capixaba, contudo, a vitória da proposta defendida pelo governo Bolsonaro foi acachapante, com apenas dois deputados contrários.
Resultado que não reflete necessariamente a vontade do eleitor no Espírito Santo, mas se insere nos fundamentos da democracia representativa brasileira. É do jogo. De toda forma, não deixa de causar estranheza que deputados eleitos pela urna eletrônica sejam justamente aqueles que a coloquem em suspeição.
A justificativa de que a proposta buscava o aprimoramento do sistema eleitoral é cativante, sobretudo quando há um bombardeio de teorias conspiratórias. É como registrou o deputado Felipe Rigoni, ao votar contra a PEC: "De fato, a gente tem um sistema que é seguro e que pode ser melhorado, com certeza, mas a gente precisa fazer isso com cautela e gradualmente".
O que também não pode haver é um sequestro de narrativa, da forma como tem sido feito, para impor uma mudança que abre feridas na democracia brasileira ao se questionar o resultado das eleições dos últimos 25 anos, quando o voto eletrônico começou a ser implementado.
Quem tem boa memória se lembra que a informatização foi motivada justamente pelas fraudes recorrentes no voto em papel e na apuração manual. E durante muito tempo a urna eletrônica foi orgulho nacional, com o Brasil na vanguarda mundial nesse processo.
Apesar de a proposta ter sido rejeitada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na semana passada, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), decidiu levá-la ao plenário para a apreciação de todos os 513 deputados, sob a justificativa de que assim a situação seria pacificada. O texto da deputada Bia Kicis (PSL-DF) teve o apoio de 229 deputados, número superior aos 218 que votaram contra a PEC, mas ainda assim inferior aos 308 necessários.
Essa derrota com vantagem de votos tem tudo para contradizer as intenções de pacificação do presidente da Câmara. Até 2022, vai ser a estratégia de combate do bolsonarismo, um número que não será esquecido. E Bolsonaro já dá mostras de que a obsessão continua: "Eles (os deputados) não acreditam na lisura das eleições", disse a apoiadores na manhã seguinte à votação.
Nos bastidores, segundo informações do colunista Lauro Jardim, do Globo, o presidente vai usar esses 229 votos favoráveis para desenhar um acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para reforçar a integridade das urnas eletrônicas. Quem acreditou que a votação na Câmara sepultaria o assunto pode ter se enganado.
Não adianta, o voto impresso deve continuar mobilizando o bolsonarismo. Muito provavelmente, o presidente vai repetir ameaças, ou direcioná-las a novos alvos. Mesmo com a derrota da PEC, Bolsonaro saiu lucrando ao mostrar uma divisão entre os deputados. O presidente não se importa em admitir que não tem provas de fraudes. O voto impresso, que antes parecia só uma cortina de fumaça, pode ter ganhado peso político e eleitoral estratégico após o arquivamento pela Câmara.
O Brasil consegue se tornar mais insólito a cada dia. Difícil crer que a pauta do voto impresso domine o debate público e acirre os ânimos justamente quando o país enfrenta uma de suas piores crises. Não é só a pandemia, uma tragédia inesperada, mas desde o início mal gerenciada: há um acúmulo de problemas anteriores a ela que não encontraram ainda o caminho das soluções. Reformas que continuam apenas nas boas intenções mostram a falta de engajamento político com um projeto de Estado mais sadio, enquanto tempo e energia se perdem com assuntos coadjuvantes.
Cabe aos parlamentares comprometidos com a democracia garantirem o encaminhamento de pautas que coloquem o país no caminho do futuro, sem embarcar em jornadas oportunistas e desgastantes como a do voto impresso, que não levam a lugar nenhum.
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