Um dos reflexos da pandemia, que impôs um longo período de aulas remotas, é o abalo na saúde mental de crianças e adolescentes. Não são raros os registros de alunos com dificuldades em lidar com o retorno presencial, mesmo já decorridos meses ou até um ano inteiro. Depressão e ansiedade são algumas das condições demonstradas por meninos e meninas.
Outros, que já apresentavam algum distúrbio, como Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), tiveram o quadro agravado.
Relatório do Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (Unicef) alertou, ainda no fim de 2021, que a Covid-19 poderá afetar a saúde mental e bem-estar de crianças e adolescentes por muitos anos. Mas ressaltava também que, até antes da crise sanitária, a faixa etária infantojuvenil já sofria de alguns males pela falta de investimentos do poder público e cuidados com essa área da saúde.
Na avaliação da psiquiatra Letícia Mameri-Trés, a pandemia foi o estopim para intensificar vários outros fatores que contribuíram para esse cenário. Além do medo da infecção pelo vírus e o isolamento social, problemas financeiros, aumento da violência doméstica e mudanças na dinâmica familiar impactaram diretamente na saúde mental das crianças e adolescentes.
A médica analisa que o convívio domiciliar mais intenso imposto pela pandemia também expôs uma realidade que não era vista, ou até mesmo deixada de lado.
“Os pais começaram a reparar as questões de saúde mental quando foram com as crianças para dentro de casa. Além disso, algumas coisas que estavam sendo colocadas debaixo do tapete passaram a não ter mais lugar debaixo do tapete.”
Letícia cita como exemplo o TDAH que, segundo ela, mostrou a cara. “Não é que a pandemia criou o distúrbio nas crianças, ela expôs o TDAH que muitas famílias não viam. Mas, em casa, os pais perceberam o tamanho da demanda cognitiva.”
A pandemia refletiu em alunos de todas as idades, de todos os anos escolares. No caso da educação infantil, a dificuldade de alfabetização a distância e a falta do convívio com outras crianças gerou uma lacuna de desenvolvimento.
Com o retorno às aulas presenciais, as crianças voltaram reativas e agressivas, o que pode ser visto, de acordo com Letícia, como uma forma de manifestação clínica de adoecimento.
Já os quadros de ansiedade e depressão se instalaram de maneira mais aguda em estudantes a partir do ensino fundamental, e a faixa etária dos 13 a 14 anos foi uma das mais impactadas.
A médica aponta que as escolas se programaram para as crianças voltarem do ponto de vista acadêmico, mas, do ponto de vista psicopedagógico, ninguém estava preparado para a realidade dos alunos que chegaram à sala de aula.
Cláudia Freitas, pedagoga especialista em acolhimento ao aluno, enfatiza que nem todas as escolas estão preparadas para lidar com o problema da saúde mental.
O momento é de começar a olhar para dentro da escola, afirma Cláudia, e pensar o que foi feito e como cuidar da saúde mental da rede escolar.
“Agora, é preciso pensar grande! Criar programas e instituir ações estratégicas, e a gestão da escola tem que cuidar disso”, salienta a pedagoga.
Para tratar o problema de saúde mental, Letícia destaca que é preciso atuar em várias frentes. “Da mesma forma que a causa foi multifatorial, é necessária uma ação multifatorial para tentar diminuir o impacto.”
A médica explica que o primeiro passo é tratar casos de urgência. Se os pais percebem que o filho está em sofrimento ou apresenta uma disfunção, deve ser levado ao psiquiatra. “Mudança de sono, alteração dos hábitos alimentares, desânimo, agressividade, apatia e indicativos de pensamentos suicidas indicam a doença. O psiquiatra, então, pode avaliar se há ou não indicação de tratamento medicamentoso e o que mais pode ser feito”.
Letícia afirma ainda que, após a avaliação médica e o início do tratamento mais urgente, a terapia é muito importante e desempenha um trabalho de longo prazo. Para ela, o papel da escola é fundamental de modo a identificar e alertar os pais sobre possíveis problemas de saúde mental observados nas crianças e adolescentes.
“Os pais não podem fechar os olhos para os problemas de saúde mental das crianças. Se isso acontece, a criança pode colher prejuízos para o resto da vida só pelo tabu.”
A pedagoga Cláudia Freitas defende uma nova cultura escolar. “A pandemia escancarou problemas na metodologia de ensino, na dinâmica dos professores, na atenção aos alunos. A pandemia deu um estalo que tudo isso tem que mudar e para ontem, com a possibilidade de um prejuízo ainda maior para a saúde mental se não mudar.”
Na opinião da educadora, essas alterações já devem ser pensadas para 2023. “Como reconstruir a escola na perspectiva de vida, de momento, de produção de conhecimento e de desejo coletivo. O grupo precisa sentar, trazer as pessoas e discutir essa nova escola.”
Cláudia sugere que os professores conduzam reflexões sobre a vida a partir do conteúdo, além de trabalhar o acolhimento ao aluno. É uma forma, segundo ela, de abrir espaço para os alunos falarem e não só ouvirem. Assim, acredita a pedagoga, será possível refazer a relação professor-aluno sem achar que o estudante “está de frescura ou mi-mi-mi”.
“A escola é um impacto social imenso de transformação. Mas estamos vivendo para que isso aconteça? Essa é a reflexão dessa nova escola, porque, se não formos por esse caminho, a saúde mental só vai piorar”, conclui.
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