"Mulheres trabalhando no campo ou na cidade sempre existiram, mas não eram vistas. E, se não é vista, não é lembrada." Com um relato simples, mas repleto de significado e emoção, a cafeicultora e empreendedora Josane Souza Lima Bissoli, 39 anos, conta como ela e outras seis mulheres começaram a se organizar há quase uma década e, com isso, mostrar a força e a importância que a mulher tem no campo.
Por todo o Espírito Santo as mulheres estão à frente de propriedades agrícolas e criando grupos para fortalecer e desenvolver projetos juntas. Muitas deixaram de ser coadjuvantes para virar protagonistas de sua própria história e juntas começaram projetos e conseguiram sua independência financeira.
Hoje, Josane e outas 20 mulheres produzem panificados e café arábica como uma forma de agregar valor à produção familiar de Vila Pontões, distrito de Afonso Cláudio, na Região Serrana do Espírito Santo. A produção de pães, bolos e biscoitos faz parte da Associação de Mulheres da Agricultura Familiar de Vila Pontões (Amep).
Josane Souza Lima Bissoli
produtora rural e tesoureira da Amep
"O que é mais difícil é o fato de sermos mulheres. Existe um preconceito muito grande contra a gente, principalmente na área rural. Quando nascíamos, eramos filhas do pai. Depois, ele escolhia o marido para nós. Então virávamos mães. Éramos mulheres três vezes: como filha, mulher e mãe de alguém. Mas, as coisas vão mudando. Hoje somos independentes e somos conhecidas pelo nosso próprio nome"
A história das mulheres de Vila Pontões começou quando foram chamadas para fazerem parte do núcleo feminino de uma cooperativa local de café. Em 2012, a cooperativa começou a trabalhar para conseguir uma certificação internacional de Fair Trade (comércio justo) e, para isso, precisava valorizar o lado social na cooperativa e na comunidade. Uma vez por mês, durante um ano, as mulheres faziam cursos de capacitação, como culinária, panificação e processados de leite.
“Com o passar do tempo, fomos nos unindo e tendo proximidade umas com as outras. Tínhamos um grupo forte de mulheres e, quando vimos, estávamos fazendo trabalho social voluntário na comunidade. Ajudávamos na cozinha da festa das escolas e das igrejas, por exemplo. Começamos a revitalizar os canteiros da praça da comunidade e a plantar árvores”, conta.
MULHERES EMPREENDEDORAS
Em 2013, as seis fizeram o primeiro encontro feminino na comunidade, chamado Batom com Prosa. O resultado foi surpreendente: 114 mulheres participaram do dia de aprendizado. Em 2015 nasceu a associação, que hoje tem 20 mulheres. Do voluntariado surgiu a oportunidade de vender os produtos panificados que produziam. O que começou com uma cozinha improvisada e com um forno que cabia apenas um tabuleiro, agora é uma agroindústria com escala de produção.
Além da Amep, elas também representam a Associada a Aliança Internacional das Mulheres do Café (IWCA - International Women’s Coffee Alliance, em inglês) no Estado. O projeto está presente em 22 países e trabalha a valorização das mulheres na cafeicultura. Com isso elas têm a oportunidade de exportar o café arábica que produzem e com um preço melhor.
MULHERES NO CAFÉ
Por falar em café, outra iniciativa que representa as mulheres na produção dos grãos em solo capixaba é a Póde Mulheres, que produz conilon de qualidade. O grupo que faz parte da Cooperativa dos Cafeicultores do Sul do Estado do Espírito Santo (Cafesul) atualmente tem 30 integrantes que trabalham desde o plantio até a entrega do grão para a cooperativa.
O grupo começou em 2012 reunindo as mulheres dos cooperados da Cafesul. A cooperativa tinha a certificação do Fair Trade e tinha a necessidade de fazer um trabalho social voltado ao gênero. Naquele ano fizeram um encontro de beleza para atrair as mulheres e as cadastraram. Mas, a ideia ficou maturando por dois anos até que fizeram a primeira reunião para discutir o que era preciso fazer dali em diante para atender a necessidade das agricultoras.
A coordenadora do grupo Póde Mulheres, Natércia Bueno Vencioneck Rodrigues, conta que em meio a essa tempestade de ideias elas começaram a pensar em cursos e capacitações que pudessem fazer para reaproveitar o que era produzido na cooperativa e as formas de ter melhor renda no campo. Em 2016, participaram de outro projeto e ali tiveram certeza de que queriam fazer café.
Natércia Bueno Vencioneck Rodrigues
coordenadora do grupo Póde Mulheres
"Esse encanto, vontade de trabalhar e força estão na nossa receita de café. As mulheres começaram a se dedicar mais aos grãos. Todas elas trabalhavam na lavoura, mas não tinham oportunidade de mostrar o que produziam. Em 2018 lançamos o Póde Mulheres. Elas estão interessadas em se aperfeiçoar na lavoura, na negociação e na degustação do conilon e fazem qualquer serviço"
No ano passado, a cooperativa comprou cerca de 10 sacas de 60 quilos produzidas exclusivamente por elas para torrar e transformar no Póde Mulheres. “Esse número vem aumentando ano a ano. Assim como o de mulheres participando e mandando o café. Também vemos o aumento da participação delas na cooperativa. Hoje temos uma mulher no conselho fiscal. Antes elas eram esposas de cooperados, hoje são cooperadas”, explica.
Apesar de elas serem protagonistas nessa história, ainda ocorrem casos em que alguns homens acham que elas não podem exercer tais posições. “São dificuldades que elas enfrentam, mas superam. Às vezes, as mulheres pedem um serviço na propriedade, como de capina ou para aplicar um produto, e eles julgam que elas não podem e vão perguntar aos maridos”, relata.
A vice-coordenadora do núcleo feminino da Cooperativa Agrária dos Cafeicultores de São Gabriel da Palha (Cooabriel), Jorcelina Cuquetto, conta que a união feminina traz mudanças dentro e fora de casa.
Jorcelina Cuquetto
vice-coordenadora do núcleo feminino da Cooabriel
"Quando você tem o conhecimento, você descobre que tem direitos, cobra mais do marido e sabe mais sobre o que está produzindo. Para algumas mulheres, participar do núcleo promoveu uma mudança absoluta para a vida delas. Elas só ficavam no campo e passaram a ter a oportunidade de conhecer outros lugares e aprender mais com isso"
O grupo começou há dez anos e atualmente conta com em de 40 a 50 mulheres. A intenção da cooperativa é criar uma marca própria para as produtoras de café, assim como outras que já existem, e, com isso, valorizar ainda mais o trabalho delas. De acordo com Jorcelina, metade das integrantes fazem de tudo na lavoura e não tinham conhecimento sobre o plantio.
"Tem uma cooperada que achava que a lavoura acabaria porque ela não entendia nada daquilo. Depois que entrou no núcleo passou a cuidar do plantio. O terreno melhorou e o café também", lembra.
TEM MULHERES NO CAFÉ E TAMBÉM TÊM MULHERES NO LEITE
Aos 75 anos de idade, Zenair Oliofi da Hora cuida praticamente sozinha da casa e da fazenda há 11 anos. Desde que o marido morreu, é ela quem administra a produção de leite e toca os negócios da família. As 20 vacas leiteiras que tem produzem por dia quase 200 litros da bebida, que é enviada para a cooperativa de laticínios Selita, onde é pasteurizada e embalada.
Zenair Oliofi da Hora
agricultora
"Você vai tocando a propriedade, fazendo pastagem, reflorestando, plantando, cuidando do gado. Para mim, é muito gratificante o que faço aqui, porque adoro a roça. Ela é minha vida"
Zenair faz parte do núcleo feminino da Selita, que hoje tem entre 25 e 30 mulheres de todo o Estado. O grupo surgiu em 2013 com o objetivo de empoderar as mulheres que vivem do trabalho no campo e aumentar suas rendas.
As mulheres participam de palestras e dias de campo. As reuniões têm temas como empoderamento, saúde e direitos das mulheres, mas também há espaço para falar sobre administração. “É sempre bom ganhar conhecimento. Aprendi a mexer com o gado, a ordenhar e pude melhorar a limpeza do curral”, diz Zenair.
ELAS LUTAM POR EQUIDADE NA ZONA RURAL
De acordo com dados do Censo Agropecuário 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 13,6% dos mais de 357,2 mil produtores ocupados no Espírito Santo são mulheres. Além disso, apenas 13,7% das pessoas que dirigem o estabelecimento de agricultura familiar são do sexo feminino. Essa é a realidade que as mulheres querem mudar: tomar para si o protagonismo e lutar por mais igualdade na zona rural.
48,5 MIL MULHERES
SÃO PRODUTORAS AGRÍCOLAS NO ESPÍRITO SANTO
Alessandra Maria da Silva, agente de extensão em desenvolvimento rural do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper), explica que quando se pensa no trabalho da mulher no campo, a sociedade já criou uma divisão de que ela precisa cuidar da casa, do orçamento doméstico, da horta e das galinhas. “Esses são elementos que não geram renda direta para a família e com isso não são valorizados. Mas, além disso, elas ainda trabalham na lavoura. Porém, quem administra são os homens e elas acabam não sendo reconhecidas”, explica.
Ela aponta ainda que existe desigualdade de gênero no trabalho e na família, que a mudança dessa realidade é uma questão de transformação na estrutura social e que o feminismo vem lutando pela equidade de gênero e para que a sociedade reconheça o valor da mulher.
Alessandra Maria da Silva
agente de extensão em desenvolvimento rural do Incaper
"Enquanto tiver divisão entre homens e mulheres vai ser muito difícil chegar à equidade 50/50. As mulheres têm direito de produzir. Temos que respeitar o que a mulher quer fazer e trabalhar para que isso aconteça"
2003
ANO EM QUE AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES NO CAMPO COMEÇARAM
As primeiras políticas públicas sociais voltadas para as mulheres do campo começaram a surgir a partir de 2003. Até 2002, menos de 10% dos empréstimos realizados pelo Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), uma linha de crédito voltada à agricultura, eram para mulheres.
O programa do governo federal existe desde 1996, porém, foi apenas em 2004 que foi criada uma modalidade de crédito exclusiva para elas.
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