Sentar à mesa para tomar um cafezinho é uma rotina diária e prazerosa na vida de milhares de pessoas, tão comum que não costumamos lembrar que dentro de cada xícara, grande ou pequena, existe o esforço de um produtor para plantar e colher, além de todo o caminho do beneficiamento que o grão exige até virar pó, de onde é extraída a bebida não alcoólica mais consumida do mundo — após a água.
Nascido e criado em uma família com tradição na cultura cafeeira em Venda Nova do Imigrante, na região Serrana do Espírito Santo, o professor e biólogo Tiago Altoé, de 36 anos, sentia falta de saber mais sobre o próprio café produzido, além de também valorizar a produção de cafeicultores vizinhos da região.
Ele talvez ainda não soubesse, mas a inquietação pessoal daria origem anos mais tarde ao projeto "Café Compartilhado". Como o próprio nome da iniciativa sugere, a experiência em tomar um cafezinho ganhou um novo sentido, visto que o consumidor teria a oportunidade de não apenas beber, mas saber a fundo sobre o café escolhido para degustar.
A ideia começou a sair do coador, ou melhor, do papel, em 2015. Aliada à vontade em narrar a história do café da própria família, ele observou no pequeno sítio onde moro ponto de partida para a iniciativa: resistindo ao tempo, dois veteranos pés de uma antiga lavoura frutificaram.
"O Café Compartilhado começou de uma observação. Onde eu resido atualmente, era o terreno do meu pai. Sou filho de um agricultor e de uma artesã. Na propriedade, existiam dois pés em uma lavoura antiga, de um catuaí vermelho, que restaram no quintal, e fiquei observando eles maduros, vermelhinhos, 'cerejas'. Resolvi catar e deu mais ou menos um quilo de café. Isso foi em meados de 2015", disse Tiago.
"Depois, comecei a lembrar das história do meu pai, da minha família e falei comigo mesmo que um dia iria trabalhar com o nosso café. Poderia contá-las, além de mostrar o trabalho que esses agricultores fazem no campo e não são divulgados. A ideia ficou adormecida por um tempo, até que em 2021 iniciei a proposta do Café Compartilhado. O nome vem exatamente disso, pois compartilhamos as histórias com tudo o que cerca as propriedades envolvidas", complementa o idealizador.
AMIZADE VIRA PARCERIA
Para iniciar o projeto, Tiago foi atrás de produtores da região. Nas primeiras visitas realizadas, ele parou no sítio do amigo de longa data, o cafeicultor Giovani Fiorese, de 36 anos. A iniciativa não poderia ter dado o pontapé de melhor forma.
Além da amizade e confiança mútuas, o produtor rural do distrito de Cotia, que fica a cerca de 14 quilômetros da sede de Venda Nova do Imigrante, tinha o que o idealizador procurava: um café especial, além de muita história para ser contada e embalada junto ao pó.
A possibilidade em divulgar as décadas e gerações da família à frente das lavouras, deu novo ânimo ao cafeicultor, que viu na parceria uma chance extra em poder contar todo esforço que o pai, já cansado da lida, empenhou durante anos.
Giovani Fiorese
Cafeicultor de Venda Nova do Imigrante
"Carrego um legado. Meu avô era produtor, meu pai também, então a produção de café está nosso DNA. Voltei [para o campo] ao sentir a necessidade em seguir com a tradição"
O retorno em definitivo de Giovani à propriedade ocorreu há oito anos. Entretanto, mesmo no período em que esteve fora, seja estudando em Cachoeiro de Itapemirim, ou quando trabalhou no comércio de Venda Nova, ele nunca se afastou da própria origem. O fator determinante para voltar foi quando ele notou o desânimo do próprio pai no cultivo do café.
A decisão se mostrou muito acertada, visto que a produção cresceu e melhorou em qualidade. Somado a isso, a oportunidade em participar da iniciativa do amigo, tornou possível ir além da venda do café que produz, mas também valorizar o esforço que ele, o pai e também o avô, entregaram em mais de 80 anos ligados à cultura cafeeira.
"Fazer parte deste projeto significa muito, pois quando vendemos o café para o atravessador da forma tradicional, a história acaba ali, ninguém sabe de onde veio esse café, onde foi produzido. Com o Café Compartilhado, a história renasce. Quem está consumindo, sabe quem produziu, a localidade, a altitude, a pontuação, a nota da análise sensorial. O consumidor tem todas as informações, a pessoa passa a conhecer de verdade o produtor e o produto", explica o cafeicultor.
SÓ BEBIDA FINA
Aos menos familiarizados a este universo, o termo "bebida fina" não é uma mera alusão à qualidade refinada do café em questão. Para que possa ser classificado de tal maneira, ele precisa obrigatoriamente atender a requisitos de padrão de qualidade e passar por um rigoroso e criterioso processo de colheita, armazenamento, secagem, análises comprobatórias, torra e outros processos.
700m de altitude
Giovani Fiorese produz cafés acima do nível do mar, ideal ao arábica
Os grãos de menor qualidade (quebrados, brocados, com umidade) são descartados, restando apenas aqueles que podem gerar uma bebida diferenciada.
De acordo com a Metodologia de Avaliação Sensorial da Associação de Cafés Especiais (Specialty Coffee Association), usada em todo o mundo, um café especial é aquele que atinge, no mínimo, 80 pontos na escala de pontuação da metodologia (que vai até 100), sendo avaliados os seguintes atributos:
Na região, o café que melhor se adapta é o arábica, visto as altitudes mais elevadas — cerca de 700m acima do nível do mar, além de temperaturas mais amenas em relação ao litoral. Essa combinação entre terreno e clima, atrelada às demais características, proporcionam que os grãos alcancem os patamares exigidos.
Rigoroso e cuidadoso com o cultivo, Giovani consegue os padrões exigidos, ao ponto de participar de todas as edições já realizadas do Café Compartilhado.
"Nosso café aqui é especial. Nossas plantas, a maioria delas, é da variedade catucaí vermelho e as distribuímos dentro do mapeamento da propriedade. Extraímos os melhores grãos, catamos as 'cerejas' já em maturação para estar beneficiando, descascamos e produzimos um café de qualidade para fazer com que chegue à mesa do consumidor", explica.
Todo este cuidado é necessário para agregar valor ao produto final. Antes de virar um cafezinho, porém, entra novamente a figura do professor e idealizador. É Tiago quem seleciona e compra os microlotes selecionados do grão "in natura" e desenvolve o trabalho de encaminhá-los para a classificação e avaliação, que antecedem a torra e moagem do grão. O processo é catalogado e todos os estágios são repassados aos respectivos produtores.
Na propriedade de um cafeicultor participante do Café Compartilhado
"A proposta é sempre muito clara. Temos uma conversa aberta neste sentido para que eles optem em participar, e também se atendem aos requisitos necessários. Só cafés especiais, limpos e sem defeitos, são escolhidos dentro de toda a produção. Pegamos o grão dentro da propriedade, compramos do produtor e a partir daí a gente faz toda a parte da análise sensorial, torra, maquinação, embalo e comercialização, que é nosso foco final", enfatiza o biólogo.
O cuidado com cada grão é justificável. Em um mercado em franca expansão, o comércio de café especiais no Espírito Santo gira em torno de R$ 1 bilhão, com uma movimentação superior a 600 mil sacas do produto, segundo o Grupo Tristão, donos da Realcafé e fomentadores da cultura do grão no Estado — o ES também é referência na produção das variedades do conilon.
Os cafés especiais capixabas são tão reconhecidos e valorizados que em 2021, a Cooperativa Agrária de Cafeicultores de São Gabriel, Cooabriel, foi vencedora na 6ª edição do concurso Aroma da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA), em 2021. A cooperativa recebeu o primeiro lugar na categoria Canephora, com 87.25 pontos, pelo microlote de café conilon.
NA XÍCARA E NO CELULAR
Com todas as informações disponíveis, era preciso reuni-las em um mesmo ambiente. A forma encontrada? Um QR Code que remete ao site do Café Compartilhado, onde cada um dos cafeicultores participantes possui a própria página detalhada com todas as características — da história do produtor, localização da propriedade até a pontuação do microlote, passando pela variedade colhida e aromas detectados. Isso, claro, sem esquecer do rosto de quem produz.
Tiago Altoé
Idealizador do Café Compartilhado
"A intenção sempre foi dar 'cor' justamente a quem é primordial. Então, colocamos os produtores coloridos e em uma posição de destaque na embalagem. O único que não tem uma pessoa ou família, é o blend (mistura) onde iniciamos o processo. Na foto, estão os frutos daqueles dois pés da lavoura antiga do meu pai, que ficaram mais de 40 anos no quintal. A identidade da minha família está naquele café"
Não menos satisfeito, Giovani Fiorese vê no projeto uma oportunidade extra de ampliar o leque de comercialização do café que produz, e de quebra fortalecer amizades antigas e também compartilhar das histórias de produtores vizinhos.
"Entrego meu produto ao Tiago e ele sabe da qualidade do meu café. Ele faz todos os testes necessários e me confirma o que deu de resultado. Essa relação é muito importante porque sei que tenho um produto bom para entregar para ele, que por sua vez terá um café excelente para comercializar. É gratificante porque não tem só a história do cafeicultor, mas da nossa vida", pontua Giovani.
NOVOS LOTES
Com duas edições já lançadas e centenas de pacotinhos de 250 gramas comercializados, a terceira está saindo do forno, e Giovani estará nela com um novo microlote especial.
Em breve, dois novos produtores farão parte do projeto, além do retorno de outros três que já estiveram anteriormente — essa variação ocorre porque nem sempre o café atinge a pontuação mínima de 80 pontos, obrigatória para ser uma bebida especial.
Ao todo, sete resenhas de seis produtores diferentes estão disponíveis na plataforma do Café Compartilhado, além do blend especial que conta a própria história do projeto. Com a terceira edição em vias de ser empacotada, a quarta já está também garantida para 2023. É a certeza que muitas xícaras de cafezinhos especiais serão consumidas acompanhadas de uma boa prosa a cada gole.
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