Em poucos dias, 2024 irá acabar e com ele extingue-se também uma profissão com aproximadamente meio século de atuação no Brasil. Desde a primeira quinzena de novembro, não existem mais engenheiros de voo atuantes por aqui.
Por mais de cinco décadas, a função notabilizou-se na aviação comercial e cargueira a bordo dos icônicos trijatos da norte-americana Boeing, o 727-200, modelo que exige a presença do terceiro tripulante na cabine ao lado do piloto e copiloto.
Com o encerramento recente da operação da aeronave por companhias aéreas brasileiras – história presenciada e narrada por A Gazeta em outubro deste ano – o engenheiro de voo foi "forçadamente" aposentado.
O modelo, marcado pelos três motores barulhentos e inconfundíveis aos ouvidos dos amantes da aviação (nem tão amado assim por vizinhos de aeroportos), começou a operar entre o final dos anos 1960 e início da década de 1970, e empresas já extintas, como Varig, Vasp e Transbrasil, foram responsáveis por mantê-lo na frota nacional.
Com a modernização natural da aviação, os aviões da categoria foram gradativamente substituídos por outros mais tecnológicos. Restou ao 727-200 ser vendido para outros mercados ou convertido para cargueiros.
De Vix para Venezuela
A última companhia brasileira que seguia com exemplares em operação contínua era a Total, que realiza rotas nacionais do serviço postal noturno dos Correios. E foi da Capital capixaba que, pela última vez, o engenheiro de voo Fabio Britto, de 54 anos, exerceu a profissão.
Nos mais de 20 anos na companhia, ele desempenhou o ofício sempre sentado à cadeira em frente ao painel com centenas de botões e comandos. O flight engineer, termo em inglês para a função, agora está oficialmente aposentado.
Na manhã do dia 13 de novembro, decolou de Vitória o avião de matrícula PR-TTO, o único 727-200F que ainda operava no Brasil. Foi nele que Fábio fez o último voo nacional dele e também do modelo – a aeronave foi entregue ao novo operador, da Venezuela. Antes de correr pela pista em direção à cabeceira 02 e ganhar os céus na estonteante decolagem com vista do litoral da Capital, ele e a tripulação receberam a reportagem de A Gazeta (assista acima).
Em meio ao checklist obrigatório, o engenheiro de voo falou orgulhosamente sobre os momentos finais dele e também da profissão no país. "É muito gratificante poder finalizar a minha carreira junto do avião, sendo o último voo aqui no Brasil. Ele marcou muito a história por onde passou e quero dedicar também aos meus amigos aviadores que estiveram comigo nessa jornada. Foram muitas coisas boas que aprendi, uma vivência gratificante e isso vai ficar marcado em minha vida. Estou muito feliz de estar sendo a pessoa que está finalizando a história do engenheiro de voo aqui no Brasil", contou.
O último voo de um engenheiro de voo e o "fim" de uma profissão no Brasil
Fabio Britto
Engenheiro de voo aposentado
"Vai deixar muita saudade. Vinte anos é uma vida, né. São mais ou menos umas 10 mil horas de voo para se ter uma noção"
Troca de cadeira
O voo derradeiro para o fligth reservou emoções extras à tripulação. Nela estava também o comandante Antônio Attanásio, que realizava a transição de engenheiro de voo para copiloto. Diferentemente do colega de profissão que optou pela aposentadoria, ele trocou de assento na cabine, mas não deixou de reconhecer os serviços prestados pelo amigo que o inspirou a iniciar no ofício.
"Primeiramente, para mim é uma grande honra voar com o 'flight', com instrutores tão experientes, com mais de 20 anos de experiência. Então, espero que a gente represente esse pessoal que voou esse avião, que vivenciou essa gloriosa aviação, e que infelizmente não existe mais. Essa aeronave é icônica para o Brasil e para o mundo. Eu tenho muita satisfação, estou honrado em voar com esses tripulantes que fizeram a história da aviação brasileira", pontuou Attanásio.
Ao lado deles estava o comandante Juan Carlos Torrico. Com décadas operando o 727-200, ele aproveitou para se despedir do "Cadillac dos céus" e desejou sorte para o novo companheiro de função. "É uma honra ter sido escolhido para fazer esse voo com meus amigos. É ótimo saber que o Attanásio, que era 'flight', está fazendo a transição para copiloto. Então é uma satisfação muito grande poder encerrar esse voo com um colega que está sendo reaproveitado, e claro, poder me despedir também do Fabio, que tanto colaborou para a empresa e a aviação nacional".
'Troubleshooting'
O nome é complicado e não possui uma tradução perfeita ao português, mas resumidamente seria um "solucionador de problemas". Enquanto Fabio se aposentou e Attanásio está no processo final para ser copiloto, outro engenheiro de voo da companhia cargueira desempenha a função de nome diferentão.
Sem atuar desde que o PR-TTW, "irmão" do PR-TTO, decolou de Vitória em outubro, Leoni Pereira exerce o novo posto na Total, após mais de 20 anos como engenheiro de voo. "Alguns fligths já estavam aposentados. Outros migraram para piloto e a maioria vai se aposentar, caso do Fabio. No meu, em princípio, vou para o troubleshooting da empresa. É um setor de sanar problemas, um gerenciamento de pane, digamos assim", salienta.
"Basicamente, os aviões estão na rota voando e surge um problema de indicação de combustível, por exemplo. Aí a equipe de manutenção nos faz uma consulta para definir se aquela aeronave vai precisar ficar em solo ou pode seguir operando. É uma consultoria rápida para uma tomada de decisão segura com quem tem experiência na aeronave", detalhou Leoni.
Nos últimos anos, enquanto manteve três Boeings 727-200F em operação no país, a companhia aérea contava com cerca de 10 engenheiros de voo, visto que cada aeronave necessitava de 3,5 tripulações por conta de férias, treinamentos, folgas e interjornadas de trabalho. Gradativamente, alguns profissionais foram saindo, sendo reaproveitados em outras funções ou aposentados.
Em comum a todos eles, um legado de mais de 50 anos de operação, exercida com muita segurança e que contribuiu para o sucesso da aviação comercial e de transporte de cargas no Brasil. Atualmente restam poucas unidades em operação no mundo, e consequentemente poucos fligths ainda na cabine. Os dois últimos modelos que operavam no Brasil seguiram para a África do Sul (PR-TTW) e Venezuela (PR-TTO), respectivamente.
Um terceiro 727-200F (PR-TTP) da companhia permanece no Aeroporto Salgado filho, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, mas foi desativado devido aos danos decorrentes da tragédia que o Estado vivenciou no começo deste ano.
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