Cheia de vitalidade e com muito bom humor, a aposentada Angela Rodrigues Amorim, que completou 100 anos no início de agosto, pode ser considerada um patrimônio vivo de Jardim da Penha, em Vitória. Moradora da região desde que foi fundada, a idosa acompanhou diversas mudanças não apenas no bairro, como em toda a Capital, e relembrou algumas delas em comemoração ao próprio centenário.
A reportagem de A Gazeta foi conhecer a história da ex-corretora de seguros em uma das casas que ainda resistem entre os prédios de Jardim da Penha. O local onde ela mora abriga os primeiros imóveis do bairro, comprados por 106 famílias que começaram a povoá-lo, a partir dos anos 1960. Embora seja capixaba, Angela morou por um período no Rio de Janeiro e só voltou definitivamente para a Grande Vitória em 1968.
"Quando eu mudei, só tinham umas quatro casas aqui. As outras estavam em construção. Ainda era estrada de chão, tinha um areal e muito, muito mato. Parecia uma fazenda. Tinha nada. Aquelas luzes bem fracas que mal davam para iluminar à noite. Nós compramos uma casa que já estava pronta, e vivo nela até hoje", relembrou.
O processo de urbanização de Vitória também engatinhava na época: enquanto algumas regiões ainda eram desabitadas, outras sequer permitiam moradias devido ao nível do mar. Essa situação só mudou após os sucessivos aterros na cidade, tornando-a mais parecida com o que é atualmente. A idosa, no entanto, lembra com carinho dos momentos que conseguiu viver em meio à natureza.
"No meu tempo, o parque da Fonte Grande tinha uma fonte muito bonita. O som ecoava por toda aquela região, perto de onde tinham os pontos do bonde. Tinham ainda umas lavandeiras, e eu era mocinha, ficava lá conversando com elas. Mas, por exemplo, não tinha nem campo de aviação ainda. Quando fizeram, virou nosso principal lazer. Íamos para passear", afirmou.
Angela Amorim
Centenária e moradora de Jardim da Penha
"Também tínhamos o costume de visitar as paneleiras, pois éramos muito pobres. Clube Vitória, essas coisas, era o lugar dos ricos. Para os pobres era a caminhada mesmo. Por isso que conheço tudo, todos os morros dessa cidade"
Trajetória
Mãe de sete filhos homens — um morreu em 2015, Angela nasceu em Rio Novo do Sul, na região Sul do Espírito Santo. Permaneceu na cidade até os dois meses; depois, foi para Colatina, no Noroeste; e, aos seis anos, veio morar na Grande Vitória, onde estudou e se formou como professora. Em 1949, pouco depois da Segunda Guerra Mundial, foi para o Rio de Janeiro, e por lá casou com outro capixaba, o colatinense Enyr Amorim, que faleceu em 1996.
"Fui passar as férias no Rio e acabei casando por lá. Passei 15 anos. Na verdade, arrumaram meu casamento, pois as nossas famílias eram muito amigas. Mas eu era doida para voltar para cá; e ele também. Dizia assim: 'Quando eu aposentar, a gente vai morar lá'. E meus filhos também gostavam. Ficavam soltos, à vontade. Eu mudei com os meninos e o Enyr ficou lá, mas vinha toda semana", narra.
A tradicional Paróquia São Francisco de Assis
Diante de um bairro pouco desenvolvido, assim que chegou em Jardim da Penha dona Angela decidiu que era hora de promover algumas mudanças. Ao lado de três colegas, ela levantou dinheiro para garantir a sede de uma igreja. Em outras palavras, não seria exagero dizer que Angela Amorim ajudou na construção da Paróquia São Francisco de Assis, uma das mais tradicionais do bairro.
Ainda na década de 1970, sem opções de lazer nos finais de semana, os poucos moradores também se uniram e tiveram a ideia de dar início à Associação Praiana 106 (confira a história do local neste link). Mais uma vez, lá estava a artesã, que também resolveu "arregaçar as mangas" para contribuir no erguimento do clube.
"Nós reunimos um grupo e cada um deu um tanto para comprar o terreno (nos dois casos, dona Angela ajudou com a obtenção de fundos). O espaço era grande, não tinha aquele edifício no meio como tem hoje. Mas, por ser caro, conseguimos só aquele pedaço do 106. Fazíamos churrascos, bailes; a gente sempre ia para lá. Foi muito bom. Agora, nem sei. Mudou tudo. Nunca mais frequentei, sabe?".
De acordo com a idosa, o bairro despontou daquele momento em diante, e uma das coisas que ela mais sente falta daquela época é a proximidade e a sensação de união entre os moradores. "Antigamente, todo mundo se dava. A gente conversava, havia abertura. Mas depois começou a mudar. Uns morreram, outros foram embora. Está muito diferente", afirma.
Trabalhos
Antes de se tornar corretora de seguros, profissão com a qual se aposentou, a novense-do-sul tinha como principal ofício o artesanato. Com bordados, tricôs e pinturas ela conseguiu manter o sustento após a morte do marido. Chegou a vender as obras em uma praça de Jardim da Penha e também na Praça dos Namorados, na Praia do Canto.
"O artesanato foi um dos grandes amores da minha vida. Quando meu marido adoeceu e tive que ir para São Paulo com ele, parei [de produzir], porque era quem me levava. Hoje não consigo mais, por causa das minhas mãos e de um problema na visão. Só continuei ensinando em um Centro de Convivência aqui do bairro, e também em São Benedito e Consolação", ressalta.
Um dos filhos da idosa, o advogado Paulo Roberto Rodrigues Amorim, de 64 anos, conta que até hoje muitas pessoas agradecem a ela por terem conseguido uma segunda fonte de renda através do artesanato. Segundo ele, esse é um dos principais motivos pelos quais a idosa é tão amada pela comunidade. Ela já foi condecorada na Câmara Municipal de Vitória ao menos três vezes.
"Acho que minha mãe lembrava dela própria quando fazia os sapatinhos. Grávida, segurando um menino na mão e outro na outra. Porque a nossa diferença de idade é muito pouca. Então, para alimentar esses filhos todos, ela pegava o trem e ia para região de Del Castilho, no Rio, porque lá tinham açougues que vendiam carne mais barata. Ela saía de manhã cedinho, 4h. Não tínhamos condições. Ia lá comprar com o dinheiro que angariava com as artes dela", contou.
O advogado aponta também que a mãe tinha um projeto de doação de sapatos de crochê para gestantes sem condições financeiras. Sozinha, Angela já chegou a tecer 50 peças por semana, e fazia a entrega de forma totalmente gratuita com um grupo de amigas. Agora, devido aos problemas de saúde, ela precisou dar uma pausa na iniciativa — mas, claro, não parou de lecionar.
"Passei 10 anos fazendo peças para nenéns de famílias que mais precisavam. A gente dava muita assistência para as comunidades mais pobres, como na Fonte Grande. Tem muito anjinho lá que já calçou meu sapatinho", indica a artesã.
Receita da longevidade
Atualmente, a centenária se dedica sobretudo às atividades domésticas – como as plantas que cultiva no quintal de casa – e aos cuidados com a família, composta ainda por 12 netos e quatro bisnetos. Ela faz questão de preparar a própria comida e só tem ajuda uma vez ao mês para arrumar a casa.
Perguntada sobre qual o segredo de uma vida tão longa e saudável, dona Angela responde sem hesitar: embora seja grata pela idade avançada, não é possível ter nenhuma receita. Apesar disso, algo que a motivou a seguir em frente foi a fé que tem na vida e em Deus.
"Sendo muito sincera com você, eu não sei. Só que tem aquela cantiguinha do Roberto Carlos: 'Se a jornada for pesada, te cansar na caminhada, segura na mão de Deus e vai'. Minha fé foi muito importante. Não vou dizer a você que sou uma heroína porque não sou. Trabalhei muito, tive muitas dificuldades", declara.
Dona de tanta sabedoria, ela ainda dá um conselho fundamental para os mais jovens (como a repórter que vos escreve). "O importante é estudar, se preparar para a vida, porque o trabalho dignifica a pessoa. Quanto mais a pessoa se esforçar, melhor conseguirá levar a vida, se Deus quiser", finalizou.
Vida longa para dona Angela Amorim!
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