De um lado, uma quadrilha integrada por traficantes e militares. No outro extremo, um esquema criminoso com envolvimento de policiais e membros do Judiciário, com o apoio ainda de importantes lideranças dos demais Poderes. Juntos, os dois grupos praticavam múltiplos crimes de corrupção e extorsão, além de mortes encomendadas. Por desvendar e denunciar essa trama e combater o crime organizado no Espírito Santo, o juiz Alexandre Martins de Castro Filho foi assassinado em 24 de março de 2003, há 20 anos.
Os detalhes que envolveram o crime são relatados em três denúncias que o Ministério Público do Espírito Santo (MPES) apresentou contra dez pessoas, das quais nove já foram julgadas. Apenas um, o colega de magistratura da vítima, Antônio Leopoldo Teixeira, apontado como um dos mandantes, ainda aguarda julgamento em processo que corre o risco de prescrever em quatro anos. Ele nega as acusações sobre sua participação no homicídio.
Mas o que levou todas essas pessoas a tramar o assassinato do juiz Alexandre? Para entender as motivações, é preciso conhecer um pouco do cenário vivido pelo Estado nos anos que antecederam o crime.
Há pelo menos dois anos antes do crime, Alexandre já era alvo de ameaças, destinadas a ele e aos que atuavam no combate ao crime organizado no Estado. Um deles, o juiz Carlos Eduardo Lemos, que também atuava na Vara de Execuções, teve sua casa invadida.
Aos 32 anos, Alexandre foi morto quando saía de seu carro, em frente à academia Belle Forme, em Itapuã, Vila Velha. Foi alvo de dois tiros — no peito e braço — disparados por Giliarde Ferreira de Souza. O último, na cabeça, quando o juiz já estava caído no chão, foi feito por Odessi Martins da Silva Júnior, o Lumbrigão.
“Poucos dias antes do crime (assassinato de Alexandre), passei a andar armado. O monitoramento que fazíamos indicava que algo iria acontecer. O Alexandre foi o escolhido, mas poderia ter sido qualquer um de nós”, relata o advogado Henrique Herkenhoff, à época procurador-chefe do Ministério Público Federal no Espírito Santo (MPF–ES) .
De acordo com o MPES, os dois executores do juiz Alexandre foram contratados. Em um depoimento à polícia, Lumbrigão revelou que o crime foi de mando e que receberia R$ 15 mil. Ele também foi apontado como sendo pistoleiro de uma organização criminosa especializada em mortes por “encomenda” e narcotráfico, liderada por Fernandes de Oliveira Reis, o Fernando Cabeção.
Para realizar o crime, Giliarde e Lumbrigão utilizaram pistolas .40 e .765, sendo que a última, assim como a moto, eles pegaram emprestadas, respectivamente, com André Luiz Barbosa Tavares, o Yoshito, e Leandro Celestino dos Santos, o Pardal.
Os contratantes foram os sargentos da Polícia Militar Heber Valêncio e Ranilson Alves da Silva. Ambos, segundo a denúncia, atuavam na quadrilha de Cabeção.
Como mandantes do crime, o MPES apontou três pessoas. Duas delas já foram julgadas: o coronel da reserva Walter Gomes Ferreira, o Coronel Ferreira, e o ex-policial civil Luiz Claudio de Andrade Baptista, o Calu, que foi absolvido das acusações.
É relatado na denúncia que, juntos, “emprestaram apoio decisivo na preparação e determinação dada aos intermediários Valêncio e Ranilson, seus homens de confiança para esse tipo de empreitada (crime)”.
E o fato de Ferreira estar em um presídio federal distante do Espírito Santo, na Papudinha, Acre, à época do crime, não foi suficiente, segundo o MPES, para negar a participação dele no crime.
No texto, é explicado que o inquérito policial tinha informação trazida pelo executor do juiz, Lumbrigão, sobre a participação de Ferreira. “Em depoimento filmado por ocasião de sua prisão, no sentido de que o homicídio tinha sido praticado ‘a mando do cara lá de cima do Acre’”, é dito na denúncia.
O último apontado como mandante é o juiz que trabalhava com a vítima. “Há nos autos (processo) fortíssimos elementos que comprovam a participação do magistrado Antônio Leopoldo Teixeira no crime”, é dito na denúncia.
E revela a motivação: “Não apenas por vingança contra a contundente atuação do falecido, mas também para tentar impedir que viessem à tona os múltiplos crimes de corrupção e extorsão por ele (Leopoldo) praticados como titular da Vara de Execuções Penais de Vitória, em conjunto com terceiras pessoas”.
Nas duas décadas que sucederam o crime, até durante os julgamentos, os denunciados, incluindo os condenados, e seus advogados, defenderam a tese de que a morte foi um latrocínio — roubo seguido de morte. O próprio Lumbrigão, em seu primeiro depoimento à polícia, afirmou que era crime de mando e, depois, mudou sua versão e se contradisse várias vezes durante o julgamento.
Carlos Eduardo Lemos
Juiz criminal e professor da FDV
"Várias hipóteses foram levantadas, como a de de latrocínio, mas foram caindo. Ficou bem claro que não era, porque todos foram condenados pelo homicídio"
Nas denúncias do MPES à Justiça, é relatado que, na época da morte, “o caos, a corrupção e o desmando” se instalaram no sistema prisional capixaba. “A ponto de somente ser possível a entrada do poder público em algumas unidades penitenciárias com o acompanhamento do Batalhão de Missões Especiais (BME) da Polícia Militar.”
Era o resultado de mais de uma década de casos de violência, escândalos de lavagem de dinheiro, de má gestão e desvio de verbas públicas, enriquecimento ilícito, ligações de políticos com o tráfico e o crime organizado relatados em dezenas de processos encaminhados à Justiça.
Henrique Herkenhoff
Advogado e procurador-chefe do Ministério Público Federal (MPF) no Espírito Santo na época do assassinato
"O Espírito Santo, na década de 1990, foi tendo toda a sua estrutura governamental permeada por organizações criminosas. Elas foram se unindo, fazendo teias criminosas e terminaram por dominar completamente a estrutura governamental do Estado. Então, a corrupção passou a ser a regra, não a exceção. O Estado entrou em enormes dificuldades financeiras, a economia patinava porque obviamente não é um ambiente para fazer negócios"
Em um dos processos, o MPES aponta que a Assembleia Legislativa oferecia “suporte jurídico” à criminalidade. O governo do Estado também era alvo de inquéritos e denúncias que apontavam até “condescendência criminosa e crime contra o sistema financeiro”.
Em paralelo, havia ainda a atuação da Scuderie Detetive Le Cocq, de cujos quadros faziam parte policiais, advogados, juízes, políticos, empresários, funcionários públicos e banqueiros do jogo do bicho. Em sua denúncia, o Ministério Público Federal (MPF) apontou que, além da prática de crimes, os membros da corporação faziam intervenções na apuração de delitos em que supostos associados estariam envolvidos, para assegurar-lhes a impunidade.
Somente em 2006, o MPF conseguiu a dissolução definitiva da organização criminosa, criada oficialmente em 1984, mas que existia desde 1965.
Toda essa violência levou o Espírito Santo à taxa histórica de 57,85 homicídios/cem mil habitantes no início de 1999, a mais alta já registrada. Números que poderiam ser ainda maiores, já que nem todos os assassinatos eram contabilizados.
Henrique Herkenhoff
Advogado e ex-procurador da República
"Tínhamos recordes de homicídios, que inclusive são números provavelmente muito maiores. Até 2002, quando alguém era assassinado, se o corpo não fosse reconhecido, nem ao menos se instaurava inquérito. Jogava fora o laudo de exame cadavérico e não se fazia nem investigação, nem registro. Os registros eram muito precários, feitos com base no DataSUS, né?"
Foi nesse contexto que chegou ao Estado, vindo do Rio de Janeiro, o juiz Alexandre, nomeado pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) em 1998. Após atuar em comarcas do interior, ele foi transferido para a 4ª Vara Criminal de Vila Velha, acompanhando de perto os casos de homicídio. Em várias entrevistas, criticava a impunidade decorrente da demora na apuração dos casos; para muitos deles, não havia nem inquéritos policiais.
Na sequência, nos anos 2000, ele foi designado, junto com os juízes Carlos Eduardo Lemos e Rubens José da Cruz, para a 5ª Vara de Execuções Penais, em Vitória. Ela reunia os processos penais dos 11 presídios existentes na época em todo o Estado, com mais de 9 mil processos parados.
Lá, segundo denúncia do MPES, os três juízes constataram um esquema de favorecimento à criminalidade organizada. “Com concessões irregulares de benefícios a criminosos já condenados e autorizações de transferência de presos para unidades existentes no interior do Estado, onde o resgate dos mesmos era facilitado, sempre mediante o recebimento de vantagens financeiras indevidas.” Era a chamada venda de sentenças.
Na denúncia é informado ainda que “pistoleiros condenados em regime fechado podiam livremente deixar o cárcere, a qualquer momento do dia ou da noite, para praticar os mais diversos crimes, principalmente os homicídios de encomenda, formatando-se aí um perfeito álibi para as raias da impunidade”.
No comando do esquema criminoso, aponta o MPES, estava o magistrado Antônio Leopoldo Teixeira, coordenador da 5ª Vara de Execuções Penais. Ele era o único juiz com atuação junto à vara e que tinha competência em todo o Estado. “Gozava o magistrado, inclusive, de grande prestígio junto ao Poder Judiciário, chegando a substituir o desembargador Geraldo Corrêa Lima”, relata a denúncia.
O esquema foi denunciado pelos juízes Alexandre e Carlos Eduardo Lemos à Corregedoria–Geral de Justiça do TJES, no ano de 2001, através de dois relatórios minuciosos, “escorados em amplo acervo probatório”, relatou o MPES.
Já naquele ano, as ameaças à vida deles começaram a ser frequentes. Houve até invasão à casa de Carlos Eduardo. “Passaram a ser ameaçados de morte, pois conseguiram enfraquecer um esquema criminoso que há muito assolava o nosso Estado”, pontuou o MPES em sua denúncia à Justiça. Em julho de 2002, a ONG Justiça Global divulgou relatório com o nome de pessoas ameaçadas de morte no Estado, e nela constavam os nomes dos juízes.
O assassinato de Alexandre, segundo o MPES, “se fazia necessário, então, não apenas para fazer cessar o ataque contra a estrutura delituosa, mas também para intimidar o seu colega (magistrado) Carlos Eduardo Ribeiro Lemos em outras investidas contra a mesma”.
A crise nos presídios se desenrolava paralela a outra. No ano 2000, foi divulgado o relatório final da CPI do Narcotráfico, indiciando o então presidente da Assembleia Legislativa, José Carlos Gratz, como um dos líderes do crime organizado no Estado, além de mais de 800 pessoas.
Na sequência, em 2001, a Xerox do Brasil anunciou o fechamento de uma fábrica no Estado devido à cobrança de propina para a liberação de financiamentos retidos, o que resultou na instalação de uma CPI da Propina na Assembleia. Logo depois foi pedido o impeachment do governador José Ignácio Ferreira (PSDB).
O esquema criminoso organizado nos presídios era de interesse do coronel da reserva Walter Gomes Ferreira, apontado pelo MPES como “o braço armado do crime organizado no Espírito Santo”. Na denúncia, é relatado que ele “comandava grande parte dos policiais militares envolvidos com achaques e a prática de pistolagem".
“Estando umbilicalmente ligado às práticas do denunciado Antônio Leopoldo Teixeira, dada a afinidade de propósitos e a amizade de longa data existente entre ambos, acabava o temido Coronel Ferreira por controlar todos os presídios do Estado”, relata a denúncia do MPES.
Por envolvimento em outros crimes, o coronel foi preso no início de 2002 e, mesmo detido no Quartel da PM, conseguiu ordenar a morte do agricultor Manoel Corrêa. Segundo a denúncia do MPES, “era uma testemunha que foi presa logo após trazer à tona informações sobre as práticas criminosas” de Leopoldo e Ferreira.
Manoel foi morto em novembro de 2002, apenas duas horas após ter sido transferido da carceragem da Polícia Federal para um presídio estadual em Cachoeiro do Itapemirim. O crime levou à queda do superintendente da PF na época, o delegado Tito Caetano Corrêa.
O assassinato ocorreu dias antes de Manoel ser ouvido pelos promotores do Grupo de Repressão ao Crime Organizado (GRCO), do MPES. Ele já havia prestado depoimento ao juiz Marcelo Menezes Loureiro, da 4ª Vara Criminal de Cariacica, confessando que trabalhava para o Coronel Ferreira.
Informou ainda, no depoimento, que participou de vários homicídios a mando de Ferreira, sendo que alguns foram presenciados pelo oficial. E que há mais de 20 anos praticava roubo de gado a mando do militar. De acordo com a Justiça, Manoel seria o encarregado de contratar os pistoleiros para o grupo e depois os executava como queima de arquivo.
Após a morte de Manoel, foi decidido que Ferreira seria levado para o presídio federal da Papudinha, no Acre. A transferência foi assinada pelo juiz Alexandre. O texto do MPES relata ainda que o juiz acompanhou, “pessoalmente, o cumprimento de sua determinação, desde a saída do policial militar do Quartel da Polícia Militar até sua entrada na aeronave, no Aeroporto de Vitória”.
Segundo a decisão tomada pelo magistrado morto, havia a necessidade de transferência porque o coronel, mesmo estando preso, “continuava comandando homicídios através de conversas pelo telefone celular”.
O esquema criminoso de Leopoldo, segundo o MPES, contava ainda com uma perna de “agenciamento dos criminosos”. Um escritório de advocacia que “agenciava os interesses de alguns presidiários ligados ao Coronel Ferreira junto à Vara de Execuções Penas, formulando os pedidos que eram deferidos de forma ilegal pelo juiz Leopoldo”, relata a denúncia.
Outra atividade do "escritório”, segundo o MPES, era “a cobrança de dívidas de agiotagem por meio da coação, ameaça e violência contra os devedores". Trabalho feito com a ajuda dos sargentos da PM Heber Valêncio e Ranilson Alves da Silva, ambos condenados mais tarde como intermediários da morte do juiz Alexandre.
O MPES apontou que o “agenciamento de criminosos” era feito pelo ex-policial civil Cláudio Luiz Andrade Baptista, o Calu, que foi julgado em 2015 e absolvido das acusações.
Paralelamente ao que ocorria nos presídios, o cenário no Espírito Santo se agravava. Em abril de 2002, o advogado Marcelo Denadai foi assassinado, o que levou à identificação de um esquema de corrupção que teria sido montado em prefeituras capixabas para vencer licitações e saquear os cofres públicos.
O crime levou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a pedir a intervenção federal no Estado, alegando infiltração do crime organizado nos poderes estaduais, o que não foi aceito. Mas o Ministério da Justiça decidiu enviar para o Espírito Santo uma missão especial de combate ao crime organizado.
Em agosto daquele ano, os juízes Carlos Eduardo Ribeiro Lemos e Alexandre Martins de Castro Filho foram designados pelo Tribunal de Justiça para acompanhar os trabalhos da missão especial. Ficavam a cargo deles os pedidos de busca e apreensão de documentos e os de prisão preventiva.
Três dias antes de ser assassinado, Alexandre ouviu o depoimento de um dos acusados pelo crime de Denadai.
Em uma das denúncias do MPES é relatado que, na época do crime, para o Grupo de Trabalho para a Repressão ao Crime Organizado (GRCO), ficou evidente a existência de uma organização criminosa especializada na prática de crimes contra a vida e narcotráfico, integrada por Fernandes de Oliveira Reis, o Fernando Cabeção (chefe), Odessi Martins da Silva, o Lumbrigão (executor), os sargentos da PM Heber Valêncio e Ranilson Alves da Silva, entre outros suspeitos.
A quadrilha era organizada com divisão de tarefas, cabendo a Fernando Cabeção a chefia. Heber e Valêncio eram responsáveis por dar cobertura aos crimes cometidos pela quadrilha, utilizando-se da condição de policiais, além de participarem diretamente de vários homicídios de encomenda, como executores, atuando como grupo de extermínio.
“O grupo se reunia, de forma ostensiva, na região de Guaranhuns, em Vila Velha, principalmente na casa de Cabeção, para combinar os crimes”, afirma a denúncia.
Após o assassinato do juiz, Fernando Cabeção, Heber Valêncio e Ranilson Alves da Silva foram julgados como intermediários do assassinato. E Lumbrigão foi condenado como o executor, assim como o também executor Giliarde e os que a eles deram apoio, Pardal e Yoshito. Seis deles já estão em liberdade.
Cabeção acabou sendo morto a tiros dentro de um veículo, em Vila Velha, no dia 28 de junho de 2020, em uma avenida de acesso à Terceira Ponte. O crime foi em Itapuã, mesmo bairro onde o juiz foi executado. Segundo as investigações da polícia, ele quis impor novas regras ao tráfico de Guaranhuns, o que gerou insatisfeitos que planejaram sua morte, entre eles um irmão e seus amigos de infância.
Coronel Ferreira continua preso, mas responde também por outros crimes. Calu foi absolvido. E o juiz Leopoldo ainda não foi julgado. O crime pelo qual foi denunciado pode prescrever em 2027, após ele completar 70 anos.
Alexandre Martins de Castro
Pai do juiz Alexandre Martins de Castro Filho
"O único que está preso é o Ferreira, porque ele demorou a ser preso. Só por isso. Mas os outros, que foram presos quase que em flagrante, estão soltos. Os executores foram condenados a mais de 20 anos, em regime fechado. Mas todos tiveram progressão da pena e saíram, no máximo, com seis anos "
Colega do juiz Alexandre na Vara de Execuções, o magistrado Carlos Eduardo Lemos, também professor da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), dá sua visão sobre o processo penal. "Acho que a sociedade capixaba quer ver esse processo terminar porque eu já ouvi isso de pessoas. Falam, 'se não conseguem terminar um processo que matou um juiz, imagina se fosse um pobre coitado qualquer'".
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