Um depoimento do juiz aposentado Antônio Leopoldo Teixeira em 2005 sobre o assassinato do magistrado Alexandre Martins de Castro Filho, em 2003, foi anexado à ação somente em 2021, 16 anos depois, gerando um grande embate na Justiça estadual, que há dois anos avalia se o conteúdo deve ou não ser aceito como prova.
A princípio, o documento foi considerado ilícito pela Justiça, mas recursos do Ministério Público do Espírito Santo (MPES), que avalia o material como importante, e da defesa, que considera ilegal, têm atrasado o processo.
Dos dez acusados pelo assassinato, apenas Leopoldo ainda não enfrentou o banco dos réus. Só no ano de 2021, o julgamento dele foi marcado três vezes e foi novamente adiado por tempo indeterminado, justamente para que a Justiça decida se o documento deve ou não ser considerado válido.
O material anexado à ação penal é um depoimento de Leopoldo prestado ao então delegado da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) Danilo Bahiense — hoje deputado estadual — e um dos que investigaram o assassinato de Alexandre Martins.
Além de 10 horas de áudio, há a degravação (transcrição literal) do depoimento com laudo pericial, que totaliza mais de 250 páginas. Diante do dilema levantado, o conteúdo foi retirado do processo por determinação judicial até que se resolva o impasse.
Aguardando julgamento desde que foi denunciado, em 2005, o juiz aposentado nega as acusações de ser mandante do homicídio do ex-colega. Alexandre era auxiliar de Leopoldo, na Vara de Execuções Penais de Vitória, quando descobriu, junto com outros magistrados, irregularidades em transferências de presos e de progressão de pena.
No depoimento, segundo informações apuradas por A Gazeta, Leopoldo teria relatado como foi a trama da morte de Alexandre Martins e detalhado a participação de denunciados no assassinato. Não há informações de que ele tenha confessado autoria ou participação. Ele foi ouvido logo após a sua prisão, ocorrida em abril de 2005. A gravação foi entregue ao MPES em 2021 por Bahiense.
Em decisão judicial existente no processo, é dito que “o ato (depoimento) foi realizado nas dependências do Tribunal de Justiça e por Delegado de Polícia que recebera a incumbência de colher depoimentos ao longo das investigações”. E ainda que houve uma “consensualidade” por parte de Leopoldo no ato (depoimento). O problema é que o material, embora conste a voz de Leopoldo, não foi assinado por ele.
O MPES recorreu contra a decisão do juiz Marcelo Soares Cunha, de não aceitar a inclusão da nova prova. Novos recursos foram feitos ao Tribunal de Justiça, onde foram acolhidos, dando aos promotores do caso o direito de apresentarem novos recursos pela manutenção da prova.
O problema é que essa demora pode acabar levando à prescrição do crime, prevista para ocorrer em setembro de 2027, de acordo com o Ministério Público. Se isso se concretizar, o réu Leopoldo não será julgado.
Leopoldo completará 70 anos em 17 de setembro de 2027. Pelo Código Penal, quando isso ocorre, o prazo para a prescrição do crime é reduzido à metade. Em uma situação normal, esse prazo é de 20 anos. O cálculo é feito com base em algumas datas, sendo a última delas a confirmação da pronúncia — a decisão judicial que o encaminhou para o banco dos réus.
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No caso de Leopoldo, essa confirmação aconteceu em 13 de maio de 2009. Assim, quando ele completar 70 anos, o que acontecerá em 2027, o prazo de contagem cai para dez anos, vencendo então em 2019, tornando o crime prescrito. Para que isso não aconteça, o julgamento terá que ser realizado antes do seu aniversário.
O advogado Flavio Fabiano, que atua na defesa de Leopoldo, diverge do prazo e alega que a contagem deveria ser em relação à decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que manteve a pronúncia de Leopoldo para ir a júri em 20 de maio de 2014.
"Se você for contar da última data, a última data é de 2014. 2014 mais 20 (anos) daria 2034. Nós estamos em 2023. Teríamos mais 11 anos, pelo menos, o que é impossível (prescrever)", observa Flavio Fabiano.
Para o Ministério Público, a adoção da data sugerida pela defesa não altera a possibilidade de prescrição em 2027, quando Leopoldo fará 70 anos de idade. "Nessa circunstância, o prazo de prescrição cai para 10 anos, também conforme a lei penal. Por essa razão, o MPES considera setembro de 2027 o termo do prazo prescricional", esclarece o MPES em nota.
Situação semelhante aconteceu em outros casos de repercussão. Um deles foi declarado prescrito em 2017 pelo desembargador Pedro Valls Feu Rosa. Trata-se do assassinato do padre Gabriel Maire, morto em dezembro de 1989 em um suposto assalto.
O ex-prefeito da Serra Adalto Martinelli também se beneficiou do recurso da idade e ficou livre de ser julgado pela morte de Claudia Novaes 23 dias antes da realização do julgamento. Pelo mesmo motivo, também houve prescrição favorável a Martinelli, em 2015, em relação ao crime do ex-prefeito assassinado, José Maria Feu Rosa. E ainda teve a pena reduzida em um terço na condenação pelo assassinato do advogado Carlos Batista.
Pelo crime contra o colega, Leopoldo foi denunciado pelo MPES em 2005. Mas somente 16 anos depois é que a nova prova foi apresentada aos promotores. Durante esse período, ela permaneceu “guardada” com o agora delegado aposentado Danilo Bahiense. Fato considerado grave pela Justiça estadual.
Marcelo Soares Cunha
Juiz responsável pelo caso, em trecho da decisão
"Todo o material não foi colacionado ao inquérito que se desenvolvia, mas mantido em seu poder por aquela autoridade policial que agora, 16 anos depois, o remeteu ao Ministério Público, já nas proximidades do julgamento pelo Tribunal do Júri, e tal circunstância é grave"
O documento foi entregue ao MPES no dia 17 de julho de 2021. Ao receber o material, o órgão requereu a juntada do laudo pericial ao processo em 3 de agosto de 2021, faltando pouco mais de um mês para a realização do julgamento, que já havia sido remarcado para setembro daquele ano.
Pai do juiz assassinado, o advogado Alexandre Martins de Castro está ciente da nova prova apresentada. “Eu não sei exatamente o porquê, mas o Danilo Baiense resolveu mostrar essa prova. Entregou ao Ministério Público, que botou nos autos e o juiz mandou retirar. O Ministério Público recorreu e o tribunal agora manteve aquela aquela prova nos autos”, comentou.
Em entrevista à reportagem de A Gazeta, Bahiense confirmou ter sido o responsável pela entrega do material ao Ministério Público. Ele também detalhou que esse depoimento foi colhido na época em que auxiliava o desembargador Pedro Valls Feu Rosa na investigação e não soube explicar o porquê de apresentar essa prova somente agora.
"Na realidade, quem deveria fazer o interrogatório era o desembargador. O desembargador tinha viajado para Brasília para verificar a situação do Dr. Antônio Leopoldo junto à Justiça. Perguntei a ele (Leopoldo) se ele ficaria constrangido em eu tomar o depoimento dele. Ele falou que não, que se sentiria muito à vontade. Então eu tomei o depoimento dele, que deve ter durado de 10 a 12 horas, mais ou menos, durante um dia", sustentou Bahiense.
A defesa de Leopoldo foi contrária à inclusão nos autos e, ao analisar o material, o juiz recusou a prova, mandou que fosse retirada e justificou sua decisão apontando alguns motivos.
Um deles foi que, embora Leopoldo tenha concordado com o depoimento e gravação, o juiz da 4ª Vara Criminal de Vila Velha ressalta que, na ocasião, ele estava preso provisoriamente e sem a formal ciência de seus advogados e familiares sobre o que ocorria. Também não foi informado ao acusado sobre as suas garantias e prerrogativas.
Outro ponto considerado grave pelo juiz foi o fato de o depoimento não ter sido assinado. “O termo de depoimento produzido por ninguém foi assinado”, informa o magistrado.
Em sua decisão de não aceitar a juntada da prova ao processo, o titular da 4ª Vara Criminal de Vila Velha acrescentou: “Material que haveria de ser considerado ao tempo da investigação policial, provavelmente dispensado naquela época por razões que apenas os envolvidos na produção poderiam esclarecer, mas é certo que a juntada neste momento promove grave quebra da paridade de armas e da lealdade processual, que devem ser preservadas à garantia da perene transparência, seriedade e equilíbrio no julgamento”.
No mesmo texto, acrescenta ainda que a degravação dos áudios só foi feita 12 anos após o depoimento ter sido colhido. “Não me refiro aos ilustres Promotores de Justiça que promoveram o pedido de juntada, mas sim, àqueles que guardaram tais registros por tanto tempo, degravaram a mídia doze anos depois e, ainda assim, no limiar do julgamento, remeteram ao Ministério Público, no mínimo, causando-lhe o constrangimento com tal novidade.”
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