A rotina de encontrar os amigos da escola, as atividades em grupo e até mesmo a bronca àquele colega que não estava prestando atenção às lições da professora. Por causa do novo coronavírus, tudo isso deixou de ocorrer. Os cômodos da casa dos estudantes tomaram o lugar das quatro paredes das salas de aula e agora são o palco de aprendizagem para a transmissão de tarefas remotas.
Na opinião do gerente de projetos educacionais do Movimento Todos Pela Educação, Gabriel Corrêa, a nova realidade submete muitos estudantes a um quadro de estresse tóxico, que é quando uma criança vivencia uma dificuldade forte, frequente e prolongada. No Espírito Santo, as aulas presenciais foram suspensas no dia 17 de março. E, desde o dia 14 de abril, cerca de 210 mil estudantes recebem conteúdos via internet e pela televisão.
“O primeiro comentário sobre o retorno às aulas é que o momento disso ser feito é muito mais uma questão de saúde pública do que uma questão educacional. As secretarias de Educação precisam respeitar muito as autoridades públicas de saúde nessa decisão, porque aí tem uma questão epidemiológica que deve ser considerada em cada localidade”, alerta.
Com as escolas fechadas, muitos Estados apostaram no ensino remoto. Como o senhor avalia esse modelo?
Em primeiro lugar, tem o elemento em que foram todos pegos de surpresa com o fechamento de escolas devido à pandemia, e as ações emergenciais de ensino remoto que foram adotadas são muito importantes. Mas a gente sabe que elas não dão conta de todos os desafios que surgiram. Elas não substituem o ensino presencial. Então, haverá, sim, muitas lacunas de aprendizagem.
Gestores das redes pública e privada admitem a necessidade de submeter os estudantes a um diagnóstico que aponte o que foi aprendido durante a pandemia. Qual sua opinião?
Na questão da aprendizagem, a gente sabe que o ensino remoto é muito importante. Manter o engajamento dos alunos com algum aprendizado nesse período de fechamento de escolas é essencial, mas como eu disse, ele não substitui o ensino presencial, ele não dá conta de todos os desafios. Muitas lacunas de aprendizagem vão ser criadas, especialmente, para aqueles alunos em maior vulnerabilidade social e econômica, porque são os que têm menos acesso à tecnologia, menos acesso ao ensino remoto. Então o que isso significa no retorno às aulas? Quais alunos aprenderam o conteúdo? Quais conseguiram ou não desenvolver habilidades? Não podemos ignorar e achar que tudo que a gente trabalhou no ensino remoto está muito bem trabalhado. É preciso diagnosticar as lacunas para ter programas de recuperação específicos para os conhecimentos que não foram adquiridos.
No seu entendimento, quais prejuízos a suspensão das aulas já causou?
A pandemia e a crise econômica que vem com ela atingem os alunos na renda das famílias. Muitos estão passando por uma situação de estresse tóxico dentro dos domicílios. Isso gera ansiedade e toda essa questão emocional e econômica prejudica o desempenho, prejudica o potencial de aprendizagem de cada um dos alunos. A pandemia deu transparência, escancarou e aprofundou as desigualdades que a gente já tinha na educação. Os alunos de baixa renda estão com muita dificuldade de ter acesso ao ensino remoto enquanto os alunos de mais alta renda conseguem aprender de forma remota com muito mais facilidade. Então, quanto mais tempo as escolas ficarem fechadas, é mais provável que essa desigualdade aumente. Quantos alunos não começaram o ano sonhando em passar numa universidade, concluir o ensino médio e agora estão tendo que trabalhar para ajudar as famílias? Muitos deles, se nada for feito, podem ter de abandonar a escola. Isso é muito grave. Na questão de aprendizagem, o ensino remoto, por mais importante que seja, não chega aos pés do ensino presencial. Ele reduz o nível de aprendizagem, ampliando as desigualdades. A sociedade brasileira não vai conseguir voltar para alguma normalidade se as escolas não conseguirem retornar de forma segura e a gente conseguir dar uma resposta educacional à altura para os alunos. O Espírito Santo, por mais que se destaque no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) do ensino médio, ainda é um Estado onde apenas 58% dos jovens de 19 anos completaram o ensino médio. Você tem um grande número de jovens que ou já saíram da escola ou não completaram o ensino médio e já estavam prestes a evadir ou abandonar a escola. A pandemia aumenta esse risco de evasão. Então, é importante esse olhar para a desigualdade e para os jovens em situação mais vulnerável.
Como o poder público pode chegar a esses estudantes?
Em primeiro lugar é importantíssimo garantir um apoio financeiro para esse jovem e para sua família. Garantir o básico de renda, garantir alimentação. Falando especialmente de ensino, muitos desses alunos não têm acesso às tecnologias, à internet. Uma alternativa é o envio de materiais físicos como cadernos e livros didáticos para as casas desses alunos. Muitos têm dificuldade para estudar no próprio domicílio, mas não fazer nada é pior. Quanto mais a gente conseguir chegar nesses alunos de diferentes formas, melhor. A gente não pode afastá-los da escola, senão é muito provável que eles não voltem. Os governos estaduais de Maranhão e São Paulo discutem a criação do quarto ano do ensino médio. É uma boa alternativa? Ser for feita de forma opcional, sim. Aqueles jovens que sentiram que perderam conteúdos em 2020, que não conseguiram ter acesso ao ensino remoto minimamente de qualidade e quiserem continuar mais um ano na escola para se preparar para o vestibular, para o Enem, eles podem. A gente vê muito positivamente até por ser uma saída muito preocupada com as desigualdades. Se essa medida for oferecida, especialmente, para o público jovem mais pobre, que precisa de ainda mais recurso para conseguir sucesso no Enem ou uma formação que lhe permita depois uma vida profissional mais bem estabelecida, eu acho muito interessante.
Com a volta das aulas condicionada às questões de saúde, não há uma data fixa para que isso ocorra. Como recuperar o ano letivo?
Não tem uma resposta única, mas alternativas que se colocam são o adiamento do ano letivo até o início do ano que vem. Será que o ano letivo de 2020, em vez de terminar em novembro, não pode ir até fevereiro e março de 2021? Teria assim um reequilíbrio de calendário. Outra saída, que a gente vê como possível, mas não para todas as escolas, são aulas aos sábados e em outros períodos. Se a escola trabalhava mais de manhã, também poderia usar o turno da tarde. O calendário estava prevendo férias para dezembro e janeiro, talvez as férias tenham que ser mais curtas e esse período também precise ser usado para aulas. Há também a opção de trabalhar o ano de 2020 e 2021 como um ciclo único. Em vez de tentar trabalhar em 2020 todos os conteúdos previstos, alguns seriam trabalhados em 2021. É claro que isso vem com desafios, mas pode ser uma saída. As dificuldades seriam os finais de ciclo que são o quinto ano do ensino fundamental e, nos estados que têm, o nono ano do fundamental, e a terceira série do ensino médio. Nenhuma dessas soluções é perfeita, mas a situação é tão atípica, tão crítica, que é preciso discuti-las porque só assim a gente não deixar o aprendizado dos jovens prejudicado.
O que deve ser considerado antes da retomada das atividades presenciais?
Quando a gente olha para outros países que já estão reabrindo as escolas, vê que começam gradualmente com algumas séries, fazendo rodízio de alunos, dando prioridade a professores mais jovens, que não têm comorbidades e doenças crônicas. No retorno, é preciso oferecer todos os EPIs necessários, garantir regras de distanciamento, orientar os professores a fazer mais atividades ao ar livre, deixar janelas e portas das salas abertas. Existe um pilar essencial, sem o qual a gente não vai conseguir retornar à alguma normalidade na educação, que é garantir a segurança dos alunos, dos professores e, inclusive, a confiança de que o ambiente escolar e o retorno à escola são seguros. Sem dar essa confiança aos educadores e às famílias dos alunos, a volta não vai acontecer de uma forma adequada porque vai haver medo, muitas críticas e vai haver procedimentos inadequados, aumentando o risco de a escola se tornar um vetor da disseminação de coronavírus.
Além da saúde física, deve haver algum cuidado com a saúde emocional dos profissionais da educação?
Um segundo elemento importante de ser considerado e ainda acho que vem sendo pouco discutido de forma geral no Brasil é a preocupação com a saúde emocional dos alunos e professores no retorno. A pandemia atinge diversas dimensões da vida das famílias e dos profissionais de educação. Há um aumento de pobreza, há o desemprego, o próprio distanciamento social. Tudo isso choca. Se não eles, seus familiares também podem ter sido atingidos com algum caso de contaminação. Quanto mais as secretarias de Educação conseguirem, junto às secretarias de Saúde e de Assistência Social, darem esse suporte psicológico na comunidade escolar, mais rápido a gente consegue voltar à alguma normalidade.
E qual deve ser a participação dos professores na construção do plano de retorno?
O plano de retorno não pode de forma alguma ser desenhado apenas nos gabinetes das secretarias de Educação para tentar ser implementado de cima para baixo. Esse é o momento em que é fundamental ouvir os professores, ouvir as angústias, as ansiedades, as demandas para entender o que está se passando nas realidades de cada professor, de cada escola e aí sim elaborar os programas que deem conta disso. A gente pode tentar desenhar o melhor plano sem consultar quem está no dia a dia das escolas, mas essas soluções não vão virar realidade. É claro que a Secretaria de Educação precisa dar diretriz, pois também não podemos achar que vamos construir algo com todos os profissionais porque isso é difícil, mas oferecer orientações, estar disposto a ouvir críticas e aprimorar ao longo do tempo é importante. Não existe no mundo uma saída certa, uma solução única. Por isso essa comunicação em duas vias, com as secretarias orientando os professores e os professores dando retorno às secretarias para ir melhorando e aperfeiçoando o plano de retorno às aulas. Sem esse envolvimento, o plano tem tudo para dar errado.
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