“Meu maior medo nunca foi da violência que eu poderia sofrer na rua por um estranho, mas dentro de casa. E não a violência física, mas a verbal, de não ser aceito, de não quererem falar comigo, de cortarem laços. Quando eu contei para a minha família que eu era trans e não foi essa a reação, foi algo aliviador. Me fez mais corajoso”, conta o estudante de Direito Rene Francisco, de 21 anos.
Rene se reconhece como transexual não-binário. A definição não tem a ver com se relacionar com homens ou mulheres, mas com a forma como ele se enxerga. Transexual, que faz parte pela letra T da sigla LGBTQIA+, se refere a quem não se identifica com o sexo biológico que nasceu. É o caso, por exemplo, da artista Linn da Quebrada, uma das participantes do Big Brother Brasil deste ano. Ela se identifica como uma mulher trans.
Já não-binária é uma pessoa que não se vê nem dentro do gênero masculino nem do feminino. No ano passado, a cantora Demi Lovato revelou se identificar como não-binária, por não se encaixar exclusivamente em um gênero.
O processo de reconhecimento social de uma pessoa trans costuma ser longo e dolorido. No caso de Rene, começou em 2018 e foi marcado por crises de pânico e ansiedade, além do medo do preconceito da sociedade.
“Muita gente do meu círculo social parou de falar comigo. As pessoas diziam que eu estava confuso, que eu era uma menina. Na escola, sempre tinha um burburinho a meu respeito”, lembra.
Foi ao lado do pai que Rene encontrou o apoio que precisava para passar por todo o processo, entre eles, o de transição. Para o estudante, era importante transicionar (fazer a transição hormonal), apesar de isso não ser uma regra na vida de todas as pessoas trans. Mas nos últimos quatro anos, alguns obstáculos impediram que isso acontecesse.
“Eu morava com a minha mãe e transicionar dentro da casa dela ia gerar um conflito que faria muito mal a mim e a ela, então não dava”, contou. “Só que durante esse tempo todo que eu tive que adiar, eu senti que estava parado no tempo, que minha vida não andava”.
A situação fez com que Dalton Morais, pai de Rene, decidisse levá-lo para morar com ele. Assim, conseguiria dar ao filho todo o suporte necessário no processo.
“O Rene passava por crises tão intensas que eu não o reconhecia mais. E eu tive que tomar uma decisão: ou eu apoio meu filho e sigo com ele como ele precisa de mim, ou eu vou ver ele deteriorando pela impossibilidade de se reconhecer pelo que ele é. Então, eu chamei para mim essa responsabilidade”, conta Dalton, que é professor universitário e procurador-federal.
Em outubro de 2021, Rene foi morar com o pai em Vila Velha. No mês seguinte, iniciou o processo de transição homonal, mudou o nome no cartório e, em dezembro, fez a cirurgia de transexualização, para retirada dos seios. Dalton acompanhou o filho em cada um desses momentos.
Dalton Morais
Professor e procurador-federal
"Eu sempre acreditei que eu não posso olhar os outros pelos meus olhos, mas como o outro se reconhece. O amor pelo meu filho e a forma que eu vejo o mundo me obriga a ser, de fato, pai e reconhecê-lo como ele é"
A história de Dalton e Rene é uma exceção. A maior parte das pessoas transgêneros não recebem o mesmo acolhimento em casa. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), pessoas trans são expulsas de casa quando têm em média 13 anos.
“Eu ouvia muito da psiquiatra do Rene que eu era um dos pouquíssimos pais que frequentava o consultório porque a maioria dos pais não quer saber”, pontua Dalton.
Dados do Ministério da Saúde compilados pelo Mapa da Violência de Gênero entre 2014 e 2017 também mostram que, para muitas pessoas trans, o lar é o local mais perigoso. É onde 49% das agressões acontecem.
A violência familiar é avaliada pelo psicólogo Sami Brito como uma reação a não conseguir entender - e não querer entender - aquela situação. Ela está muito ligada a fatores de construção da sociedade.
“Desde quando se descobre o sexo de um bebê, criam-se expectativas sobre a pessoa que vai nascer, a identidade de gênero dela, a orientação sexual. E quando a pessoa cresce e diz que não se entende a partir desse sexo ou gênero que a ela foi atribuído, há uma frustração por parte da família”, pontua o psicólogo, que também vê a religião como um dos fatores que dificulta o reconhecimento das pessoas trans.
“A questão religiosa está muito enraizada e faz com que as famílias tenham dificuldade para entender a orientação sexual, a identidade de gênero. Quando a gente fala de Deus, a gente fala de uma entidade que ama as pessoas como elas são. Então é preciso olhar para o ser humano e amá-lo como ele se enxerga”, destaca.
IMPORTÂNCIA DO ACOLHIMENTO
Quando a analista de relacionamento Jasmyn Moreira, 27 anos, se assumiu como uma mulher trans, a relação que ela tinha com a mãe, inicialmente, se estremeceu.
“No início foi difícil porque também tinham questões religiosas. Foi um processo em etapas. Primeiro veio a aceitação, a fase de entender que ser como você é não é errado, e o reconhecimento. Mas eu via uma sensibilidade muito grande da minha mãe e uma vontade de resgatar nossa relação”, contou.
Para Rosania Macial, mãe de Jasmyn, o processo também não foi fácil, mas era importante estar ao lado da filha. “Eu levei um tempo para olhar para ela como uma mulher trans. Mas eu comecei a ligar o amor que eu sinto por ela à pessoa que ela é, e entendi que ela nasceu assim. E o mais importante, ela nasceu de mim", afirma.
Com o tempo, a situação acabou aproximando mãe e filha e permitindo que Jasmyn encontrasse apoio para se reconhecer, estudar e trabalhar.
Jasmyn Monteiro
Assistente de relacionamentos
"O apoio da minha mãe foi essencial para que eu conquistasse muitas coisas na minha vida. Porque mesmo se eu tivesse tudo o que tenho, mas não recebesse o apoio da minha mãe, eu teria lacunas abertas dentro de mim. Eu não seria a mesma"
Para Ítalo Laham Gomes, 20 anos, a cumplicidade com a mãe também aumentou durante a transição. Isso permitiu que o processo fosse encarado de forma natural e com menos medo do julgamento alheio.
“Eu nunca cheguei para ela e disse ‘eu sou transexual’, ela foi percebendo e buscando informação. E ela sempre ficou do meu lado, me ajudando no processo de hormonização. Ela foi a pessoa que mais me incentivou a trocar meus documentos. Isso é muito importante para mim", afirmou.
A ativista travesti Deborah Sabará, que coordena a Associação Gold (Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade) no Espírito Santo, avalia que é perceptível a diferença que o apoio familiar faz no processo de reconhecimento de uma pessoa transexual.
“A gente sofre preconceito o tempo todo, de todas as formas. Quando a família acolhe, o desenvolvimento daquela pessoa na escola, na socialização de espaços, no trabalho é outro. É como se fosse uma garantia de exercício de direitos, que ela não vai ser excluída de espaços, que vai poder ir a praia, andar de ônibus, fazer tudo que uma pessoa faz, sem medo”, opinou.
PROCESSO É DURO E SOLITÁRIO
Entender a transexualidade, contudo, leva tempo e pode ser um processo difícil para os pais. Para muitos, é como viver um luto e depois o renascimento de uma pessoa.
“No início, a gente fica sem saber o que fazer. Eu tinha expectativa do crescimento de uma filha e quando ele se assumiu transexual, eu tive que trabalhar a minha cabeça de uma outra forma, para um filho”, lembra a operadora de caixa Fabiana Vieira Gomes. Ela conta que para entender o que estava acontecendo na vida do filho Ítalo, e ajudá-lo nesse processo, passou a pesquisar sobre o assunto.
Fabiana Vieira Gomes
Mãe do Ítalo
"Meu maior medo sempre foi magoar meu filho. Então eu fiz bastante pesquisa, estudei, conversei com outros meninos trans. Aprendi os pronomes, me adaptei a chamá-lo no masculino para que ele se sentisse bem. Eu me transformei junto com ele"
Para alguns pais, além de ser longo, esse processo é solitário, como relata Dalton.
“A experiência que eu vivo com Rene, eu vivo sozinho. Eu não tenho um pai que já tenha passado por isso para conversar, trocar experiências, saber o que a pessoa fez, o que foi bom, o que não foi. É um processo duro”, afirmou.
COMO A FAMÍLIA PODE APOIAR
Não há uma fórmula de como os pais ou familiares devem se comportar para mostrar apoio e acolhimento a uma pessoa trans. Contudo, algumas atitudes são importantes para facilitar o diálogo e criar uma relação de confiança, como pontua o psicólogo Sami Brito, que atua como Analista de Diversidade e Inclusão da ArcelorMittal.
“É importante deixar o ambiente fértil para a conversa. Se você constrói uma relação em que nada é tabu, a pessoa vai se sentir à vontade para falar sobre qualquer assunto, inclusive os que são mais difíceis para ela”, destacou.
Para os pais de pessoas transexuais, tudo se resume em respeito, acolhimento e amor.
“É importante a gente olhar através dos olhos dessas pessoas e não do nosso. A partir do momento que eu me coloquei no lugar dela, e eu entendi as dores e o sofrimento que ela tinha por ter que se adaptar ao mundo que não aceitava quem ela era, eu entendi que eu precisava estar ali e dar amor”, afirma Rosania.
Com ajuda de especialistas e pessoas entrevistadas pela reportagem, A Gazeta preparou uma lista do que é possível fazer para demonstrar apoio. Confira:
- Escute o que a pessoa tem a dizer, o que ela sente em relação ao próprio corpo;
- Leia sobre o assunto, pesquise. Hoje em dia, há muito conteúdo na internet que pode ajudar a abordar o assunto;
- Se coloque no lugar do outro. Lembre-se que a pessoa está em um local de sofrimento e dor;
- Participe do processo de transição se a pessoa optar por fazê-lo;
- Se mostre interessado sobre o pronome que a pessoa quer usar, as roupas que ela gosta de vestir. Esteja junto;
- Procure conversar com outros pais e familiares de pessoas trans que já passaram pelo processo. É importante para ajudar a entender e tirar dúvidas;
- Busque ajuda psicológica. O processo não é simples e nem rápido. Ter apoio psicológico é fundamental para encontrar formas de lidar com a situação;
- Crie um espaço seguro para a pessoa transexual e intervenha em situações de transfobia ou que possam constrangê-la. Isso traz confiança e segurança.
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