Luvas apropriadas, álcool, toalhas antissépticas e medicamentos de emergência. Uma rotina regida pelo medo e que exige do professor capixaba Lucas Gonçalves Dias, de 32 anos, cuidados redobrados. Diagnosticado com anafilaxia, ele precisa carregar diariamente na mochila um 'kit sobrevivência', para evitar evoluções da alergia da qual é portador. Considerado grave, o quadro dele foi tema do primeiro episódio da nova série do médico Drauzio Varella no Fantástico, da Rede Globo.
Natural de Colatina, no Noroeste do Espírito Santo, o professor descobriu ser anafilático em 2015, embora já apresentasse sintomas desde a infância. Atualmente morador de Jardim da Penha, em Vitória, ele já enfrentou mais de 20 internações, sendo que, em ao menos duas delas, foi até considerado morto e precisou passar pelo procedimento de reanimação.
No caso de Lucas, a lista de coisas que podem ativar uma crise alérgica é extensa: frutos-do-mar, canela, abacaxi, amendoim, coco, castanhas, entre outros. Os alimentos de cor verde, como salsa, cebolinha e brócolis, por exemplo, também costumam ser perigosos para o professor. Objeto feito a base de látex? Nem pensar. É 'gatilho' para uma reação severa.
Gravidade
Os principais sinais de que Lucas pode estar entrando em crise são sudorese, inchaço, coceira, pressão na garganta – como se estivesse fechada – e desmaio. Em entrevista ao site A Gazeta e ao Fantástico, ele relembrou situações de risco vividas por conta da alergia. Veja abaixo.
- Caldo de sururu: "O vizinho estava cozinhando sururu com camarão. Eu tava em casa, fervendo água para fazer café. Veio aquele vapor de peixe. Como a casa inteira estava fechada, não tinha circulação de ar. Eu não consegui pedir ajuda, foi um desespero. Caí já em crise anafilática, eu apertei os botões de emergência no celular que disparam a minha localização e uma mensagem de socorro. Quando chegaram, eu já estava roxo. Me levaram para o hospital e entrei em parada cardiorrespiratória. Por alguns minutos, eu fui declarado como morto. Porque [durante] todo o procedimento que fizeram para me reanimar estavam usando a luva [de látex]. Quanto mais eles faziam a massagem cardíaca, mais a crise se agravava devido à luva";
- Desmaio no ônibus: "Uma vez eu caí dentro do Transcol. Tinha um homem vendendo amendoim, o que ativou a crise. Passei mal, o motorista parou, me socorreu e, depois, fui para o Pronto Atendimento (PA)";
- Trancado no banheiro de avião: "Nós [Lucas e a esposa] decidimos viajar para o exterior, para Portugal, com uma escala de Paris. Vimos quais procedimentos seriam necessários, avisamos à companhia aérea da circunstância... Quando começaram a servir alimento na parte da frente do avião, o cheiro, peixe, propaga muito rápido, eu comecei a me sentir mal, transpirar, coçar, ficar vermelho. A gente percebeu que era um sintoma de alergia, corremos para o banheiro do avião e ali eu fiquei o restante da viagem toda";
Como descobriu
A família de Lucas começou a desconfiar que algo estava errado ainda na infância. Segundo o professor relembra, tudo piorava quando bebia chá – embora seja considerada até hoje uma "fórmula secreta" para espantar doenças, servia apenas para agravar cada vez mais a condição do menino. Afinal, aqui vale a pena lembrar, o professor é alérgico a alimentos verdes.
"Naquela época, por falta de tratamento correto, a gente apelava para a medicina alternativa, conhecimento popular. E eu sempre acabava passando mal. Mas não se conseguia fechar um quadro exato. Eu não fazia atividade física, não ia a aniversários", destacou.
Adaptação da rotina
Tamanha complexidade requer que Lucas planeje milimetricamente a própria rotina, todos os dias. E em diferentes áreas: na cozinha, por exemplo, o segredo é preparar comida, evitando as refeições cuja origem são desconhecidas. "Aprendi a cozinhar para me virar. Faço variações de receitas dentro dos temperos e dos ingredientes que posso ingerir", explicou.
Ele ainda chama a atenção para a contaminação cruzada – traduzindo, significa infectar, de alguma maneira, os pratos preparados especialmente para aquela pessoa alérgica.
Lucas Gonçalves Dias
Professor
"É uma doença que não tem fenótipo. Não tem escrito na nossa testa que somos anafiláticos"
"Não consigo ir a um restaurante ou uma pousada, porque não sei se na cozinha utilizaram uma colher contaminada [com os alimentos que ele não pode comer], ou se os ingredientes tiveram contato na mesma tábua. As pessoas podem até achar que não faz mal, mas já é o suficiente para desencadear uma crise", afirmou.
A mochila dele também está sempre equipada com o necessário, caso tenha uma crise fora de casa. Há ainda uma pulseira de identificação que o acompanha diariamente, no qual consta tipo sanguíneo, telefones de familiares, entre outras informações cruciais.
Até no casamento
Diferentes adaptações também precisaram ser feitas durante o casamento de Lucas com a esposa, a professora Flávia Medeiros. A festa, que ocorreu em um restaurante ao ar livre na Serra, contou inclusive com uma equipe de socorristas e do Corpo de Bombeiros.
"O pessoal que trabalhou na preparação das comidas foi orientado a usar luva de nitrilo, justamente para não ter essa contaminação cruzada; os convidados também comiam apenas o que era servido pelos garçons, para não haver o risco de trocarem os talheres. Houve a comida 'normal', e a minha", disse.
A esposa de Lucas também possui intolerância a alguns produtos químicos que, inclusive, já a levaram ao hospital. Por isso, os dois montam uma "força-tarefa" para se ajudar, mutualmente. O casal está junto há quatro anos.
"Ele testa alguns produtos químicos que me dão reação, e eu testo os alimentos. [...] Chego no ambiente e falo 'não dá para tu entrar'. Sou meio que o teste. E ele também é para mim o teste de coisas que não posso", contou Flávia.
Ajuda importante
Uma das principais estratégias para amenizar as crises anafiláticas de Lucas é a caneta de adrenalina autoinjetável. Segundo a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI), o remédio acaba sendo essencial, pois controla a gravidade da crise até que o paciente consiga buscar atendimento médico.
Entretanto, para recebê-la de graça pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o professor precisou entrar com um pedido judicial em 2015. E ele até conseguiu a aprovação, mas coincidentemente após mostrar na prática, perante o juiz, como as crises ocorriam.
"Durante a audiência, tinha um difusor de canela no ambiente. Na presença do juiz, meu corpo começou a dar sinais, mas não vi ninguém abrindo nada, alguma comida; nada. Fui socorrido, e disse que possivelmente era algo na sala. Só não sabia o quê. Descobriram, então, o aromatizador, e isso foi o estopim para darem com urgência a liberação da adrenalina", contou.
Atraso do medicamento
Mesmo após a medida judicial, o professor relata que tem dificuldades para retirar as canetas. De acordo com Lucas, ele necessita de duas doses mensais da adrenalina, só que já chegou a ficar oito meses sem o medicamento.
"Recebê-la é outra batalha. Como ela vem por importadora, o Estado deu várias desculpas no ano passado, devido à guerra da Ucrânia. Atrasou já cerca de uns oito meses. Mas eu tenho um mandado judicial, não precisaria estar passando por isso", criticou.
E o medo de ficar novamente sem o remédio ocorre próximo da pior época do ano para Lucas: a Semana Santa. Em 2023, ele e a esposa chegaram a se isolar em uma casa em Linhares, no Norte do Espírito Santo, para 'fugir' das celebrações. O motivo disso tudo? O maior consumo de peixe, do qual é alérgico, durante o mês de abril.
"A maioria das minhas internações aconteceram na Semana Santa; perto das festas juninas, por causa do amendoim; e também no Natal, devido ao látex. Não consigo entrar em estabelecimentos com ar-condicionado e que estejam decorados com balões, porque os resíduos ficam presos no ambiente", explicou.
Estereótipos
Como se não bastassem as batalhas travadas com a doença e a luta pela própria vida, Lucas critica que ainda precisa lidar com o preconceito e a desconfiança das pessoas sobre o quadro dele. "Eu não preciso de muito, só de respeito!", é o que reivindica o professor.
"Já seria suficiente se eu chegasse com um prato pronto em um restaurante, por exemplo, e eles entendessem isso; se frequentasse um estabelecimento e pedisse para tirarem tal ingrediente, sem nenhuma dor de cabeça. Tive uma crise recentemente, cheguei no hospital e tive que respirar, olhar para as pessoas e falar 'eu não sou contagioso'. Parece que eles ficam com medo", desabafou.
Lucas Gonçalves Dias
Professor
"Uma criança alérgica uma vez me abordou e perguntou se poderia ter um futuro como o meu. Pesa, machuca? Machuca. A empatia muda a forma como nós, alérgicos e anafiláticos, conseguimos ver a vida "
O professor também pede por uma maior especialização dos médicos capixabas na área, para que haja mais informações sobre a doença e um atendimento rápido e eficiente.
O que diz a Sesa
Questionada sobre os atrasos do fornecimento da adrenalina, a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) informou que o estoque encontra-se regularizado, "devido à entrega pelas farmácias que tinham o dispositivo em estoque por devolução de pacientes que não a utilizaram".
"A Gerência de Assistência Farmacêutica (GEAF) esclarece que esses dispositivos não estão disponíveis para aquisição no mercado nacional, sendo necessária sua importação. No entanto, esse processo depende de diversos fatores, como a disponibilidade de fornecedores habilitados para seu fornecimento e autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para entrada no país. Desse modo, alguns atrasos podem ocorrer", disse, em nota.
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