Quando passou a tingir os brinquedos da própria filha para que ficassem pretinhos, a artesã Armicinha Leone, de 65 anos, não imaginava que um dia viraria referência na luta contra o racismo. Abusando da criatividade e do talento, ela se tornou a idealizadora de um ateliê apenas de bonecas negras, no bairro Cidade Continental, na Serra.
Chamadas de "Bonecas Palmas", elas possuem diferentes tamanhos, materiais e cores de cabelo. Os modelos são únicos, ou seja, cada pessoa garante uma peça exclusiva, e todos os detalhes são confeccionados à mão.
Por mês, a artesã produz cerca de 40 bonecas, para diferentes partes do Estado e do país. Elas são vendidas de forma física ou pela internet, com preços entre R$ 45 e R$ 100.
ORIGEM DAS BONECAS PALMAS
A história de dona Armicinha com as bonecas teve início durante a infância. Embora não tenha trabalhado com costura ao longo da vida, ela sempre produzia algumas peças, inspiradas nas mulheres da sua família. Dona Armicinha atuou como contabilista por mais de 30 anos, carreira na qual se aposentou.
"Eu não sou costureira, mas faço as bonecas desde pequena. Minha mãe e minha avó que me ensinaram. A gente não tinha boneca como hoje em dia. Na época, eram todas bonecas de pano ou de espiga de milho. Aprendi com elas e fui fazendo as minhas", relembra.
Assim que sua filha nasceu, há mais de 30 anos, algo a atraiu para mudar a estética dos brinquedos. Armicinha pegou a maioria das bonecas da criança e as coloriu, com o intuito de que ficassem cada vez mais pretinhas. Ela usava desde tinta de cabelo até pó de café para conseguir pintá-las.
"Na época em que ela ainda era criança, não existiam bonecas pretas. Se até hoje é difícil encontrar, imagine naquela época. Eu pintava todas, para que ela conseguisse se reconhecer. Dava banhos de tinta de cabelo até chegar na cor que eu queria", relembra.
Yara Leone da Silva
Estudante e filha da artesã
"Às vezes, ela (dona Armicinha) também deixava as bonecas mergulhadas em água com pó de café para pegarem uma tonalidade mais escura. Ficavam parecidas comigo. Isso fez toda a diferença em como me enxergo, como enxergo o mundo e as pessoas ao meu redor"
Anos depois, dona Armicinha passou a confeccionar o brinquedo de pano para doar a hospitais, asilos, eventos da comunidade, entre outros. "Demos o nome de 'Palmas' porque quando eu chegava no hospital e as crianças viam os cabelos coloridos, começavam a bater palmas. Antes mesmo de chegar nelas, ficavam alegres, aplaudindo", conta.
Essa produção voluntária perdurou entre 2006 e 2018, até que Armicinha se aposentou e decidiu abrir a loja embaixo da casa onde mora. Atualmente, as bonecas são vendidas para todo o Brasil. Alguns dos estados que receberam as produções da artesã são Minas Gerais e São Paulo.
PRECONCEITO VELADO
Apesar da repercussão positiva, dona Armicinha ainda lida com muito preconceito. Neste ano, em um evento de economia solidária na Serra, ela preparou uma exposição com várias das suas bonecas. Resolveu compartilhar o momento nas redes sociais. Foi quando um conhecido da família, por Whatsapp, perguntou: "Todas pretas, tadinhas! Cadê as brancas?"
"Ele falou como se as bonecas pretas tivessem 'sobrado', como se ninguém quisesse comprá-las. Fiquei triste", refletiu.
Pouco tempo depois, a artesã rebateu: "As bonecas brancas você encontra em qualquer loja", escreveu. Indignada com a situação, a filha de dona Armicinha, Yara Leone da Silva, de 32 anos, compartilhou a história no Twitter e o post viralizou, alcançando mais de 30 mil pessoas.
"Certa vez, me perguntaram se o que eu estava fazendo era 'vodu' (expressão espiritual de matriz africana que normalmente é associado à feitiçaria). Também me questionaram um dia por que eu só fazia bonecas pretas. Disseram que nem todo mundo ia comprar", relembra.
"Algumas pessoas não entendem como isso pode impactar a educação de uma criança. Não é só a questão racial. Com o surgimento da internet, dos celulares, elas estão cada vez mais distantes dos brinquedos. Essa afetividade sumiu. Se isso for trabalhado mais cedo, tanto em casa quanto nas escolas, pode haver uma melhora", completa a aposentada.
40 BONECAS
É O NÚMERO DE PEÇAS QUE ARMICINHA FAZ POR MÊS
IDENTIDADE
Para a filha de dona Armicinha, as bonecas foram não apenas um instrumento de diversão durante a infância, como também uma forma de autoconhecimento. O fato de a mãe ter pintado seus brinquedos, conforme ela explica, a ajudou a entender melhor sobre a sua própria identidade.
"Às vezes, ela também deixava as bonecas mergulhadas em água com pó de café para pegarem uma tonalidade mais escura. Ficavam parecidas comigo. Isso fez toda a diferença em como me enxergo, como enxergo o mundo e as pessoas ao meu redor. A minha mãe e o meu pai sempre fizeram questão de deixar claro que eu era preta. Não tive que aprender isso sozinha", ressalta Yara.
Cliente da artesã há mais de um ano, a atriz e moradora de Vitória Beth Caser conta que busca fortalecer a luta antirracista quando compra as bonecas para a sobrinha de dois anos, que mora em São Paulo.
"Se a criança começa a ver a boneca branca e a preta juntas, não vai fazer distinção quando começar a estudar com os coleguinhas. Os pais e as famílias precisam ficar atentos a isso. Precisamos questionar por que só compramos bonecas brancas", pontua.
Bonecas de pano pretas são resistência ao racismo
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