Após cinco meses da pandemia do novo coronavírus, decretada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no dia 11 de março, e há mais de 130 dias de isolamento, podemos ter esperança de dias melhores, principalmente com a possibilidade de que novas vacinas sejam liberadas entre o final deste ano e o início do outro.
A avaliação é da doutora em Saúde Coletiva e Epidemiologia, a professora Ethel Maciel, do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e também membro do Núcleo Interinstitucional de Estudos Epidemiológicos (NIEE). “As perspectivas são melhores do que no início da pandemia, quando achávamos que poderíamos ficar nesta situação por quase três anos”, pondera.
Mas até que a imunização ocorra, destaca Ethel, precisamos manter a esperança aliada a medidas de segurança. “Ainda não é hora de relaxar, precisamos ter cuidado, mas o momento tão esperado vai chegar”, assinala. Nesta entrevista ela faz ainda uma avaliação dos últimos cinco meses e pontua as dificuldades enfrentadas para se fazer o combate e controle da Covid-19, uma doença que dizimou milhares de pessoas. Confira:
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Estamos chegando há cinco meses de pandemia. Que avaliação a senhora faz deste período?
No início da pandemia não havia regras claras. Cheguei dos Estados Unidos, por exemplo, e fiz minha quarentena voluntária, porque ainda não havia uma obrigatoriedade. Logo depois, o Ministério da Saúde editou o decreto da quarentena, porque até para a comunicação para o trabalho não era uma coisa simples, não havia regras claras. Demoramos a fechar as fronteiras, não tinha uma vigilância nos aeroportos brasileiros, nenhuma avaliação de chegada dos passageiros - de checagem de temperatura, de onde foram, de onde voltavam, se apresentavam sintomas. E quando veio a decretação da pandemia, a doença já tinha se espalhado. Um vírus que não conhecíamos, com uma taxa de contaminação muito alta, e que foi infectando muito rápido as pessoas.
O que faltou?
Considero que a falta de coordenação nacional foi muito ruim, porque cada Estado adotou medidas de forma independente e isto explica um pouco porque agora estamos em momentos diferentes da pandemia. Cada Estado foi fazendo as suas regras. No Espírito Santo fechamos as escolas no dia 17 de março e o comércio no dia 20. Fomos um dos primeiros no Brasil a tomar medidas mais duras. São Paulo fez antes, mas quando já estava com transmissão comunitária, o que não foi o nosso caso. Considero que a medida adotada aqui foi oportuna e em bom momento.
Quais as consequências?
Diferente de países desenvolvidos, que criaram condições para que as pessoas ficassem em casa, como Canadá e Alemanha, que assumiram o salário dos trabalhadores para as empresas não fecharem, por dois meses, em uma quarentena mais severa, no Brasil ocorreu o contrário. Nós permitimos que as empresas despedissem, reduzissem carga horária, diminuíssem os salários. Fizemos um movimento inverso, desprotegendo os trabalhadores, ao invés de protegê-los. A ajuda do governo federal também demorou muito a chegar, principalmente para quem estava na informalidade e para as micro e pequenas empresas. E, quando chegou, veio sem uma mudança grande no arcabouço jurídico. Você, teoricamente abriu crédito, mas com as mesmas regras, com a burocracia do nosso país, e cerca de 17% das empresas tiveram acesso ao crédito. Sem uma coordenação nacional da pandemia, no final de abril, começamos a ter uma pressão muito grande por parte dos empresários para a reabertura do comércio, das empresas, o que culminou com as flexibilizações e tudo que vimos posteriormente.
E como estava a situação da doença?
Em meados de março, já tínhamos cerca de 200 mortes no país e elas apresentavam perfil diferenciado, mostrando a desigualdade, afetando as pessoas com mais comorbidades, mais dependentes do SUS. Foi quando começou o plano do governo de ampliação dos leitos, mas ele não foi coordenado com os municípios, para a ativação e efetivação da atenção primária a saúde. Houve ampliação de leitos, mas não tivemos uma organização do sistema de saúde em todas as etapas, como ampliar a testagem, ampliar a saúde da família, ir à casa do cidadão, ver se ele está com febre, se tem a síndrome gripal, fazer o teste, o que foi outro problema.
Qual?
Não tínhamos teste, e este foi também foi um problema da articulação federal. Ela era necessária para comprar os exames porque o Brasil não fabrica. Tínhamos que comprar e importar. E isso ocorreu em um momento em que todo mundo buscava o mesmo produto. Se não tem articulação do país para comprar, a situação fica mais difícil para os Estados. Ocorreu até um certo canibalismo entre eles, cada um tentando comprar o que dava. Com poucos testes, quase todas as unidades da federação estabeleceram critérios para fazer os diagnósticos, o que foi dificultando e espalhando o vírus, porque muitas pessoas são assintomáticas, têm poucos sintomas, e, sem teste, não dá para saber quem está ou não contaminado. Estamos em agosto e ainda não temos testes para todos que chegam ao sistema de saúde com síndrome gripal.
A Covid-19 teve o comportamento esperado no Brasil e no ES?
Teve um comportamento esperado até um determinado momento. O problema é que a nossa estratégia foi esperar a pessoa ficar doente para internar, e não ir atrás, identificar os contaminados, como outros países fizeram. Alemanha, por exemplo, fez 100 mil testes por dia, vasculhando todo mundo. Quando você faz testes em massa, independente da pessoa ter ou não sintoma, você isola aquele que testou positivo e a tira de circulação, quebrando a cadeia de transmissão da doença. Não fizemos isso, primeiro porque não havia teste e mesmo agora continuamos esperando as pessoas chegarem às unidades de saúde. Acho que este talvez tenha sido o nosso principal erro: a falta de investimento em identificação precoce das pessoas.
Por quê?
Tenho falado isto desde maio, mas ainda penso que temos tempo, principalmente agora que a doença está mais no interior e estamos detendo na Grande Vitória. É um momento diferente da pandemia e não temos equipes de saúde para fazer estas testagens, identificar estas pessoas contaminadas o mais precoce possível, o que é importante para evitar que cheguem grave aos hospitais ou terem que ser transferidas para a Grande Vitória, onde está a maior parte dos leitos hospitalares.
A senhora assinalou que outro problema veio das narrativas políticas e sua interferência no controle da pandemia.
Infelizmente as narrativas políticas atrapalharam bastante o controle da pandemia. Acabamos sendo guiados não por evidência científica, mas por ideologias políticas, tendo que abrir tudo porque a economia iria falir. Houve uma politização e uma polarização que atrapalharam muito as medidas de controle, porque a população ficava confusa. A primeira delas vindo do governo federal, de que tinha que liberar as atividades comerciais e industriais para salvar a economia, que as pessoas tinham que morrer, que a pandemia seguiria o curso natural. E depois, num segundo momento, alguns estados flexibilizaram as medidas movidos por muitas pressões. No Espírito Santo tivemos muitas carreatas. Depois tivemos uma segundo pico dessas narrativas.
Foram as discussões sobre medicamentos?
A história dos medicamentos foi bastante prejudicial. Ainda somos o único país que está nesta discussão sobre um medicamento sem evidência científica nenhuma para utilização no tratamento da Covid-19. A doença que ainda não conta com nenhum medicamento para combatê-la, mas criou-se a narrativa de que um determinado medicamento poderia tratá-la. E teve ainda a polêmica, se desviando da ciência, num negacionismo científico, e apoiando questões ideológicas, de cunho político, em uma guerra de comunicação muito forte, com informações divergentes sobre o uso da máscara. Nossas autoridades sanitárias orientando o seu uso, e o governo federal dizendo que não precisava, assinando decretos de que não eram necessárias. Tudo isto foi muito prejudicial ao controle e combate da doença.
Em paralelo, o número de mortes só crescia.
Esta discussão inócua nos colocou neste patamar de mortes em que não há motivos para comemorar. Somos o retrato do que aconteceu. Vivemos a maior crise sanitária dos últimos 100 anos, tivemos sucessivas trocas no Ministério da Saúde e até hoje não temos um ministro efetivo. Nós já sabíamos o que estava acontecendo nos outros países, tivemos tempo para nos prepararmos e não conseguimos controlar devidamente a doença. Nunca tivemos um lockdown mais severo, em que realmente funcionasse somente os serviços essenciais. E mesmo o tempo em que conseguimos a adesão de algumas medidas mais restritivas, ele foi insuficiente, porque não conseguimos manter as pessoas em casa. Outros países foram mais rigorosos, seguiram a ciência, e a flexibilização só ocorreu depois que tinham controlado a doença, com a taxa de reprodução abaixo de 1, ao contrário de nós.
Como?
Flexibilizamos as medidas de segurança muito antes de a taxa de contaminação estar abaixo de 1. Agora estamos de fato chegando a um patamar abaixo de 1, mas não porque tenhamos feito algo certo, mas muito mais pelo limite da doença, porque muitos são infectados, morrem, e criamos imunidade de grupo. Parece que a taxa está caindo, mas não pelas medidas que tomamos, porque flexibilizamos num momento em que a curva estava subindo. A expectativa era de que tivéssemos mais mortes do que se teve até agora, mas essa redução não aconteceu porque fomos eficientes, mas por alguma razão de comportamento do vírus, que ainda não conseguimos saber.
Ainda vamos ter muitas mortes?
Estamos com cerca de 2.500 mortes, mas quando começarmos a descer a curva, ela é um espelho da subida, e você tem mais ou menos o mesmo tanto de mortes registradas na subida, se nada for diferente. A nossa previsão é de que vamos chegar aos mais de 4 mil mortos. Em um Estado pequeno como o nosso, perder 4 mil pessoas para uma única doença, em cinco meses, é uma tragédia sem precedentes.
Teremos uma segunda onda da doença?
Não acredito que vamos ter esta segunda onda. Na verdade, estamos tendo uma primeira onda muito estendida. Não fizemos uma quarentena severa, que diminuísse bastante a transmissão, quando a taxa de contaminação estava em 1.70 ou 1.80, começamos a flexibilizar. Não chegamos a controlar a pandemia antes de abrir o comércio. E isto não aconteceu só no Espírito Santo, mas em quase todos os Estados, o que fez com que arrastássemos esta curva, com pico, por muito tempo. Por exemplo, enquanto em outros países, com 50 dias de medidas mais restritivas foi possível controlar a pandemia, nós estamos tentando desde março, já são mais de 130 dias, e agora é que se pode dizer que a situação está estabilizada, mas ainda não controlada.
O que temos para a futuro?
Esperança, apesar desta tragédia, do custo de muitas vidas, de muitas famílias chorando seus mortos, sem poder se despedir, o que foi muito triste. Mas temos esperança de que estamos saindo do pior momento. Ainda que tenhamos muitos que ainda vão se infectar, mortes que vão acontecer, já podemos vislumbrar esperança com esta possibilidade da vacina, os estudos são promissores e apontam que a teremos até o final deste ano ou no início do próximo. As perspectivas são melhores que no início da pandemia, quando a dúvida era de que poderíamos ficar nesta onda por quase três anos, sem uma vacina, com infecções e reinfecções. Podemos ter esperança, mas com atenção, continuando com as medidas de segurança. O problema agora é o cansaço.
Por quê?
Após mais de 130 dias de pandemia, estamos todos cansados. E, pessoas cansadas ficam mais distraídas, acabam pulando etapas como, por exemplo, não lavam mais as mãos como antes, esquecem a máscara, não mantêm o rigor de antes. Todas as ações de segurança que adotamos hoje não fazem parte da nossa cultura. As pessoas aderiram, mas não é algo para o qual estamos adaptados. É natural que, quando se diz que estamos melhorando, todos queiram se apegar a algo bom, querem se livrar de tudo o que os deixam cansados. Ainda não chegamos ao momento de relaxar, ainda precisamos ter cuidado, mas o momento tão esperado vai chegar, podemos ter esperanças.
O que a pandemia nos ensinou?
A conexão que existe entre nós. Estamos todos conectados. Quer um exemplo? Você trabalha e um colega pega a Covid-19. Ele passa a ser um problema para você e toda a sua família, que também podem se contaminar. Não adianta eu ter um bom acesso à saúde se quem está ao meu lado não tem. Por isto a importância da saúde pública, porque o que acontece com o outro me afeta, e se ele não tem acesso à saúde, posso ser contaminado, porque neste mundo conectado, vírus e bactérias passam a ser problema. Daí a importância de compreender que, o que acontece com um impacta o outro.
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