Após sofrer com bullying na adolescência e, constantemente, se sentir deslocado nos ambientes que frequentava até há bem pouco tempo, o professor Helder Vieira de Jesus, de 39 anos, finalmente recebeu um diagnóstico que o ajudou a lidar melhor com o que lhe causava desconforto: ele tem Transtorno do Espectro Autista (TEA). O autismo tardio, como é popularmente descrita a condição de saúde mental por quem a descobre na fase adulta, tem sido cada vez mais revelado a pessoas que já deixaram a infância.
O neurologista Pedro André Kowacs, médico do Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e chefe do serviço no Instituto de Neurologia de Curitiba, aponta que há um número crescente de pessoas que não eram reconhecidas com TEA e recebiam outros diagnósticos, mas descobrem o autismo já na vida adulta.
Pedro André afirma que não existem marcadores específicos para que exames laboratoriais pudessem ter detectado o autismo desde criança. Mas havia uma ideia de que o transtorno afetava somente aquelas pessoas que tivessem uma tendência a movimentos repetitivos observados ainda na infância.
O conceito de TEA, acrescenta o médico, mudou e ficou um pouco mais abrangente. Até a intolerância a alguns tipos de alimentos ou a dificuldade de contato visual com os outros podem ser indicativos dessa condição.
"Há um fenômeno curioso. Aqueles que têm o espectro autista veem o diagnóstico com um certo alívio porque, antes, não conseguiam explicar uma característica que os desagradava. De certo modo, agora que sabem, sentem-se mais confortáveis", observa o neurologista.
E é assim que se percebe o professor Helder Vieira de Jesus, após receber o diagnóstico em 2019. "Num primeiro instante, foi um choque. Mas, agora, me sinto aliviado", reforça.
A trajetória do educador até saber que tinha TEA não foi fácil. Com o bullying e o isolamento social forçado, Helder entrou em depressão. Fez tratamento, mas não deixava de apresentar as características que o tornavam alvo do desrespeito e da violência. Quando ingressou no mercado de trabalho, ele notou a situação piorar e, novamente, ficou depressivo. Até que uma amiga lhe apresentou um psiquiatra, que chegou ao diagnóstico de autismo.
Uma das características marcantes de Helder, segundo ele mesmo, é o hiperfoco. Antes de saber do autismo e fazer terapia direcionada a essa condição, não conseguia iniciar ou terminar uma conversa, não tinha filtro social — "na minha cabeça, só existia a verdade ou mentira, não tinha meio-termo" — e não se sentia inserido em nenhum local.
Com o tratamento, usou o hiperfoco para estudar e começou a respeitá-lo, no sentido de que, sabendo que é autista, reconheceu que o contato social muito intenso pode desencadear crises. Assim, reduziu o tamanho das turmas e consegue dar aulas sem dificuldades para a educação especial. O fato de ter TEA, na opinião de Helder, o aproxima mais das crianças e o permite compreender melhor, pelas próprias experiências, as limitações de cada aluno.
Agente de combate às endemias, Igor Valim Sarmento, 30 anos, descobriu há apenas três anos que é autista. Ele revela que, desde pequeno, se sentia diferente de outras crianças. Apresentou um atraso na fala significativo, corrigido a partir dos 10 anos, e tinha um convívio social complicado. Na infância, recebeu o diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Porém, devido aos recursos financeiros da família, não foi possível investigar o quadro de saúde mais a fundo.
Chama a atenção que Igor tinha sinais comuns a pessoas com autismo, como os movimentos repetitivos, e, mesmo assim, não foi diagnosticado na infância. Para ele, foi um choque descobrir o TEA já adulto. Tanto que precisou de cerca de um mês para processar a nova informação na sua mente. O agente faz acompanhamento psicológico, mas também considera o seu trabalho uma terapia.
"As visitas que a gente faz às casas exigem interação social. Isso está sendo muito bom para mim. Aprendo a conversar com cada pessoa que me atende. Isso mostra, também, que o autista pode estar em todo lugar", ressalta Igor, que é servidor concursado.
Membro do Conselho Regional de Psicologia do Espírito Santo (CRP-ES), Júlia Carvalho dos Santos explica que o TEA, assim como muitos diagnósticos, passou por uma série de transformações ao longo da história, inclusive com desencontros em termos científicos, que levavam algumas pessoas a serem diagnosticadas com outros problemas de saúde mental. Por um tempo, lembra a psicóloga, o autismo chegou a ser considerado uma espécie de esquizofrenia infantil, mas hoje já se sabe que é um transtorno do neurodesenvolvimento e que o seu aparecimento não é culpa da mãe — outro equívoco que persistiu no meio científico.
"Hoje, o autismo tardio tem se manifestado mais porque muitos adultos, vendo os filhos com comportamentos parecidos com os seus e já tendo as crianças sido diagnosticadas, vão procurar um profissional para avaliar sua condição", constata.
Júlia orienta que as pessoas sempre busquem um especialista para se submeter a uma avaliação, que é eminentemente clínica e individual. Ela diz que alguns têm problemas na interação social, e outros, dificuldades sensoriais. Mas cada aspecto, de maneira isolada, não é determinante para um diagnóstico de TEA e somente um profissional de saúde poderá apontar a condição.
Pedro André ratifica esse posicionamento, destacando que um fenômeno desses, isolado, não produz a condição de saúde. "Em geral, precisamos de um conjunto de fatores. E não se deve fazer um diagnóstico apressado, nem por leigos. A visão simplista é perigosa", adverte o médico, diante da informação de que há uma onda de diagnósticos sendo propagada em redes sociais.
O neurologista frisa que os médicos estão constantemente indo a congressos porque a medicina evolui muito. Por isso, os profissionais precisam estar atualizados para, assim, se tornarem aptos a fazer a avaliação do quadro apresentado pelos pacientes.
"O autismo, em adultos, decorre de um diagnóstico mais apurado. Em crianças, está havendo um aumento real. O que quero dizer com isso é que é bem mais prevalente do que há 20 anos. Não se sabe ainda o porquê, mas há uma tentativa de mapear as causas. Hoje, apesar de poucos avanços em termos de tratamento farmacológico, temos tido alguns progressos e, com maior compreensão da genética e do meio ambiente em relação ao autismo, aumentam as possibilidades de tratamento. O futuro é muito estimulante", conclui.
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