Por muitos anos, o silêncio da noite em Vitória foi diariamente interrompido por um som inconfundível –— amado por muitos e odiado por outros. Sempre entre 23h e 0h, quem reside ou residiu nos arredores do aeroporto da Capital capixaba já sabia que neste intervalo decolava o tal "avião barulhento". O responsável? O Boeing 727-200F da Total Linhas Aéreas, cargueiro que realizava o serviço postal noturno dos Correios.
Aos que guardam com carinho o ruído emitido pelos três motores, não adianta mais olhar para o céu no horário de costume ou criar expectativas pela "sinfonia" que ecoava pelos ares. Veja abaixo os bastidores da despedida:
Exatamente às 23h41 do dia 20 de setembro de 2024, o icônico trijato de matrícula PR-TTW — carinhosamente chamado de Tango/Tango/Whiskey — decolou pela última vez do terminal aeroportuário de Vitória, deixando órfãos os admiradores do modelo e "restabelecendo" o sossego para quem não era tão fã assim. Após mais de duas décadas de operação somente pela companhia, o TTW deixou de fazer parte da frota da Total — além dele, a empresa ainda operava os "irmãos" PR-TTO e PR-TTP.
MODERNIZAÇÃO
Os três boeings 727 da Total eram os últimos remanescentes operando no Brasil. O modelo foi desenvolvido pela gigante norte-americana entre os anos de 1962 até 1984, com 1.832 unidades produzidas. Originalmente, os trijatos eram destinados ao transporte de passageiros, mas foram convertidos para cargueiros, virando uma referência mundial no transporte de cargas.
O 727 notabilizou-se por ser um avião de muito sucesso, capaz de operar em pistas curtas, de piso asfáltico, concreto ou terra, e devido à popularidade do modelo, conforto e robustez, recebeu o apelido de "Cadillac dos céus". Além disso, ele possui uma escada traseira por onde é possível realizar o embarque e desembarque de passageiros, ideal para aeroportos de menor porte.
Por mais nostálgico que seja ver uma lenda ainda em operação com quase cinco décadas voando, a empresa se viu obrigada a modernizar a frota devido aos custos operacionais, além da escassez de peças para reposição. Já há alguns anos, a Total vem substituindo gradativamente os 727 pelo 737-400F, mais modernos, econômicos (apenas dois motores) e silenciosos. Atualmente já são quatro na empresa: PS-TLE, PS-TLA, PS-TLB e PS-TLF, este último ainda em processo de regulamentação e regularização para operar no Brasil.
"THE LAST DANCE"
O último voo do TTW foi marcado pela emoção: desde o despachante de voo, passando pelos colaboradores e chegando à tripulação. A reportagem de A Gazeta esteve no Aeroporto de Vitória e registrou toda a operação de carregamento da aeronave até a decolagem.
Coube ao piloto Roberto Fleury a missão de ser o comandante do último voo do lendário trijato. Sem esconder a satisfação pessoal, mostrou-se lisonjeado em ter a chance de voar o modelo pela última vez partindo do ES, mas fez questão de dividir o momento com o amigo e copiloto, Juan Carlos Machado Torrico. "É um privilégio. Mas como sempre falo, uma sorte também porque poderia ser qualquer um da empresa, pois todos são competentes. Por um acaso do destino fui escalado junto do comandante Juan, um piloto bastante experiente na aeronave, muito mais experiente do que eu, inclusive, e que voa há anos no 727.
Roberto Fleury
Piloto do 727-200F da Total
"Estou muito feliz em poder fazer esse voo e triste por estar acabando porque é um avião que qualquer aviador gostaria de voar"
"Eu vou completar oito anos na aeronave, fechando com esse voo em torno de duas mil horas neste modelo, o único que voei na empresa", conta Fleury, que passará pelo simulador para operar os 737-400 da empresa em breve.
À MODA ANTIGA
O sentimento exaltado pelo comandante é ainda maior para o copiloto Juan Carlos Machado Torrico. Com uma vasta experiência no modelo, destaca que voar um 727 remete a uma aviação onde a figura do piloto era muito mais importante e atuante.
Juan Carlos Machado Torrico
Piloto do Boeing 727-200F
"É realmente um privilégio porque isso aqui é a aviação de ouro, que infelizmente está deixando de existir"
"Comecei a voar esse avião em 1998, na antiga VASP. Passei por outras empresas e estou voando nesse avião praticamente há quase 20 anos. Tive o privilégio de poder ser o primeiro jato que voei e isso aqui é uma senhora escola. Realmente é o avião que formou a grande maioria dos pilotos que operam os grandes aviões hoje. Certamente passaram por esses analógicos", pontua Juan.
TRÊS NA CABINE
O 727 é diferente e único até nisso. Por ser de gerações passadas, o modelo exige a presença de um engenheiro de voo na cabine junto ao piloto e copiloto para que a operação transcorra em segurança.
Na última decolagem do TTW partindo de Vitória, coube a Leoni Pereira fechar a trinca de tripulantes ao lado de Fleury e Juan. "Os aviões modernos já são todos computadorizados, é bem diferente. Os sistemas são totalmente automatizados. Essa função aqui (engenheiro de voo) já não existe mais, na verdade, deixará de existir quando os 727 deixarem de voar. E foi ótimo ter voado esta aeronave, nesta função, por tanto tempo. O trabalho foi bem realizado, sempre com muito eficiência", destaca Leoni, que acumula 20 anos como engenheiro de voo e 25 anos de empresa.
EQUIPE DE SOLO
Para que um avião decole, especialmente um cargueiro, o trabalho começa muito antes de a aeronave correr pela pista e iniciar a fase de voo. No solo, mais precisamente no pátio do aeroporto, despachantes, mecânicos e outros colaboradores desempenham funções primordiais para o carregamento dos três porões do trijato. Para a turma "da pista", estar presente e participar ativamente do último voo do TTW também é emocionante.
"Aqui agora é só saudade. Esses dois aqui (PR-TTW e PR-TTO, que coincidentemente estava no pátio) são os últimos dois 727 do Brasil. E ter a oportunidade de estar perto dele aqui em Vitória é uma sensação única. É uma tristeza, na verdade, pois além de trabalhar, sou fã do modelo", brinca o despachante de aeronaves da Total, Marlon Caetano.
É dele a responsabilidade em conferir a amarração das cargas, documentá-las, checar a pesagem e planejar a distribuição nos porões dianteiro, traseiro e principal (onde seria o espaço dos passageiros). Este trabalho é fundamental para evitar um deslocamento durante o voo, o que pode causar acidentes graves e fatais.
A despedida do icônico cargueiro PR-TTW do Aeroporto de Vitória
PRESENTE NO ADEUS
Devido ao longo período em operação na Total, somado às décadas de fabricação, o Boeing 727-200F sempre mexeu com o imaginário de muitos apaixonados por aviões.
Ainda criança, o agente de aeroporto, estudante e entusiasta da aviação, Calebe Murilo, de 21 anos, marcava presente no saguão do antigo Aeroporto de Vitória para ver as aeronaves, e, claro, o icônico trijato já o encantava. Anos mais tarde e trabalhando diretamente no setor, o jovem marcou presença no adeus do TTW, a quem se refere como um "velho amigo".
NOVOS DESTINOS
Apesar de quase "cinquentões", os aviões remanescentes seguirão ainda em operação por mais alguns anos, visto que continuam aptos. Os dois já não fazem mais parte da frota da companhia curitibana (originalmente criada em Minas Gerais) e apenas dois deles continuam no Brasil, ainda que momentaneamente.
O PR-TTW, após decolar de Vitória para Guarulhos (SP) e concluir a rota do serviço postal noturno, seguiu para o Aeroporto de Florianópolis (SC), onde passou por uma revisão e a pintura característica da empresa foi toda removida, restando apenas a matrícula na fuselagem da aeronave.
Na manhã do dia 29 de outubro, o avião decolou de Santa Catarina e seguiria até Natal (RN), onde a tripulação da nova operadora, uma companhia da África do Sul, assumiria a operação para levá-lo ao continente africano. O trijato, porém, fez uma parada em Guarulhos (SP) antes de seguir rumo à capital potiguar.
Classe "F"
A letra indica ser um cargueiro original ou convertido, caso do 727-200F
Destino parecido terá o PR-TTO. Este ainda permanece com a pintura original da Total e "repousa" momentaneamente no pátio do Aeroporto de Vitória. Em breve, o mais velho dos três Boeings 727-200F deverá seguir rumo à Venezuela, país de origem do novo operador.
Idade e ano de fabricação dos 727-200F da Total:
- PR-TTW - 44 anos (1980)
- PR-TTP - 46 anos (1978)
- PR-TTO - 48 anos (1976)
O último da lista teve um final inesperado e triste. Devido aos danos sofridos no período em que esteve praticamente tomado pela água no pátio do Aeroporto Salgado Filho, o PR-TTP acabou forçadamente aposentado.
O avião até poderia ser recuperado, mas os custos para deixá-lo em condições eram elevados. Por conta disso, a Total optou em aproveitar componentes que não foram danificados e a aeronave foi desativada. Recentemente, o PR-TTO recebeu um dos motores do irmão mais velho em Vitória. O teste do motor, inclusive, aguçou a curiosidade dos moradores nos arredores do aeroporto.
Em homenagem pelos serviços prestados, a Total Linhas Aéreas agradeceu aos "três filhos" que integraram a frota da empresa.
Com um legado construído em milhares de voos ao longo de décadas, o 727-200F marcou época no transporte aéreo de cargas no Brasil. Os trijatos deixam de operar no país sem registros de acidentes e com a certeza do dever cumprido. Sucesso total.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.