Maria Luiza e Natália: duas meninas pretas e vítimas de preconceito devido à cor da pele e ao cabelo crespo
Maria Luiza e Natália: duas meninas pretas e vítimas de preconceito devido à cor da pele e ao cabelo crespo. Crédito: Fernando Madeira

Cabelo crespo: como escolas podem ajudar a combater atitudes racistas

A educação antirracista deve estar na política pedagógica das unidades de ensino, mas também ser a conduta nas famílias e em outros espaços, como igrejas e clubes

Tempo de leitura: 12min
Vitória
Publicado em 01/06/2022 às 11h06

Era para ser um dia de diversão, brincando com a filha Maria Luiza no parque instalado na Praia de Camburi, em Vitória, mas se tornou o momento em que a mãe percebeu que a menina, na época com 3 anos, teria uma dura batalha já a partir daquela idade: enfrentar o racismo. De pele clara e, portanto, sem a vivência de quem é negro, a servidora pública Janine Gomes de Faria ficou em choque com a agressividade de um menino ao falar do cabelo crespo da Malu, como chama a filha, e mais ainda com a passividade da mãe do garoto diante das ofensas.

A situação é só um recorte do preconceito diário com que lidam pretos e pardos e demonstra a urgência da educação antirracista nas escolas, nas famílias e em outros espaços sociais, como igrejas e clubes. 

Naquele dia do parque, Malu ainda não entendia as agressões quando o menino falou que ela era "cabeluda de pico", mas pela maneira em que foi atacada, lembra Janine, sentiu que não se tratava de um elogio e começou a chorar.

A mãe do garoto não estava por perto, porém, quando chegou, tentou minimizar. "Ah, isso é coisa de criança. O pai dele fala assim também", conta a servidora pública que, mesmo dois anos depois, ainda fica indignada. O mais surpreendente para ela é que o menino também era negro, porém ele tinha o cabelo raspado. 

"Aonde ela ia, o menino ia atrás. E quando alguém dizia para ele não falar, ele respondia: 'posso falar sim, ela é cabeluda de pico mesmo'. A mãe dele, quando chegou, achou que não era nada de mais e levou na brincadeira. Ela agindo assim faz parecer que aquilo que o filho fez é algo natural", lamenta Janine. 

Após esse episódio, Janine tentou evitar que a agressão tivesse impacto negativo na vida de Malu e não ficou falando do assunto. No entanto, aquela não seria a única vez em que a menina, hoje com 5 anos, teria que encarar o preconceito. Nos parquinhos, crianças saíam quando ela chegava, outras já se referiam ao cabelo crespo de maneira pejorativa, dizendo que era feio e bagunçado. Malu, na visão delas, nem mesmo podia se vestir de Mulher Maravilha porque a heroína da história é branca. 

A gota d'água, para Janine, aconteceu no condomínio em que morava em Jardim Camburi. A filha tinha acabado de acordar e foi até a janela olhar quem estava no parquinho. De lá, crianças começaram a gritar: "Você não tem pente em casa, não? Como você sai com o cabelo deste tamanho na janela? Você não tem vergonha de sair com o cabelo assim, não?"

A servidora pública ficou chocada e decidiu escrever um post no grupo do condomínio, pedindo que os pais conversassem em casa, ensinassem os filhos a respeitar as diferenças.

Janine Gomes de Faria

Servidora pública

"Ela estava dentro de casa! Como seria a vida dela, insustentável? Dentro de casa ela ia ser humilhada e ofendida por uma coisa que é dela? O cabelo dela não é feio, o cabelo dela é assim "

Alguns pais entenderam o recado e suas crianças começaram a chamar Malu para brincar; outras, porém, insistiam nas agressões — uma delas era de uma família religiosa, segundo afirmou a síndica do prédio. "Mas de que adianta ser de igreja e não se solidarizar? Não me procuraram em nenhum momento. Minha filha ficou arrasada. O que adianta ser testemunho para todo mundo e não ser nessa situação?", questiona Janine. 

Malu ainda enfrentaria mais uma situação lamentável no Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Ana Maria Chaves Colares. A mãe conta que a professora da menina insinuou que ela havia pegado o lápis de uma colega. Ao tomar o material para entregar a outra, ouviu da garota, branca e loira, que tinha um lápis igual e não era o dela.

Janine disse que foi até a unidade de ensino conversar com a educadora, de quem ouviu que não houve a intenção de ofender. "Por que, então, não achou que a outra menina é que tinha pegado o lápis da minha filha? Ela nem cogitou isso. Para ela, minha filha é que tinha roubado. Isso é muito pesado."

Matéria especial sobre racismo
Malu e a mãe, Janine Gomes: lições de autoestima para a menina aceitar suas características. Crédito: Fernando Madeira

Tantas situações enfrentadas em tão pouca idade e Malu já precisou aprender a se defender dos ataques, ela responde àqueles que falam mal do seu cabelo. Em casa, porém, demonstra a fragilidade natural de uma criança e chora. Pede para alisar o cabelo e diz que não quer mais ser preta. 

"Vivemos em um país que elegeu a brancura, os traços físicos de origem europeia como único padrão de beleza possível. Desse modo, tudo que foge a esse padrão é visto como ruim, de menor valor, conforme ainda ocorre com o cabelo crespo e tudo aquilo que remete à pertença racial da população negra. Sendo assim, não há a discriminação somente desse tipo de cabelo, mas do negro em sua totalidade. Sem sombra de dúvidas, a discriminação sofrida pelos negros em razão do cabelo, afeta a autoestima, a construção de identidades positivas entre as crianças afro-brasileiras", sustenta Luana Tolentino, doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 

CHAPINHA NO CABELO

A jovem Natália Heloísa Santos, 18 anos, sabe bem o que é isso e ainda na infância também ouviu os primeiros insultos por conta de sua cor e do cabelo crespo. Usou muita chapinha acreditando que, com os fios alisados, acabariam os julgamentos e seria aceita. Por muito tempo lidou com esse drama da não aceitação até decidir passar pela transição capilar e resgatar a autoestima por ser preta. 

Matéria especial sobre racismo
Natália decidiu passar pela transição capilar e resgatar a autoestima por ser preta. Crédito: Fernando Madeira

A professora Luana Tolentino observa que o país vivencia um momento singular da luta negra, em que o reconhecimento e a valorização da estética negra é uma das principais bandeiras.

"Felizmente, esse movimento impacta nas vivências de indivíduos negros, que têm exigido maior representatividade, que têm exigido espelhos nos quais sua imagem seja refletida de maneira positiva, que têm exigido o direito de ser e existir, de ser quem realmente são, de ser o que quiserem. É muito bonito ver essa mudança principalmente entre os jovens, que cada vez mais ostentam cabelos black power, tranças, turbantes, enfim, tudo que reafirma a condição de negros", constata.

Mesmo ciente da sua beleza e do valor da ancestralidade africana que a caracteriza, Natália não passa incólume aos ataques raciais. Ela conta que no mês de maio, durante a preparação de uma apresentação de uma matéria eletiva na Escola Aflordízio de Carvalho, foi abordada por um aluno que, entre outras declarações, perguntou se ela estava no cio, falou da aparência dela e que a mulher dele era mais bonita porque era branca, de olho claro e consegue pentear o cabelo. Disse que Natália tem cabelo duro e pente não entra.

Natália Heloísa Santos

Estudante

"Ele e os amigos ficaram rindo de mim, rindo de mim. Aquilo foi me afetando, aumentando a minha ansiedade, me deixando sem ar"

Natália se queixa que o tratamento para o agressor foi diferenciado, sem punição, e sua mãe, a advogada popular Josi Santos, acredita que sua filha acaba sofrendo mais na escola por ser combativa, não aceitar discriminação nem para ela nem para os outros.

Matéria especial sobre racismo
Ana Clara, Julia e Natália: as três foram agredidas na escola por serem pretas. Crédito: Fernando Madeira

A jovem já saiu em defesa das colegas Ana Clara dos Santos Pereira e Julia de Andrade dos Santos, ambas do mesmo colégio, após insulto alusivo à cor da pele. As meninas haviam sido escolhidas pela direção como jovens protagonistas. Segundo relato delas, no início do ano, na primeira reunião com líderes de turma, um aluno que participa do grupo trocou mensagens em que diz "por favor, não coloca aquela preta chata no grupo porque ela me irrita". As meninas não sabem a quem o aluno se referia, mas ambas se sentiram ofendidas.

SOCIEDADE RACISTA

Para a professora Jacyara Silva de Paiva,  membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e presidente da Comissão de Heteroidentificação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), é preciso reconhecer que vivemos em uma sociedade racista e, apenas quando o problema for considerado real, poderá ser combatido de maneira mais adequada. 

Jacyara Silva de Paiva

Professora e presidente da Comissão de Heteroidentificação da Ufes

"A educação antirracista não passa pano, não finge, não fortalece o mito da democracia racial. A educação requer não só uma lei, uma mudança no currículo, mas [mudança] dos discursos, da lógica. E não é só na escola; a educação não se dá só no espaço escolar"

A educadora reconhece o valor da lei 10.639/2003, fruto da mobilização do movimento negro que tornou obrigatório o ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira em sala de aula, mas reafirma que, mais que a legislação, é necessária uma mudança prática no cotidiano escolar e que essa conduta seja levada também a outros espaços de formação. 

Ela diz que a implementação da lei não ocorreu como deveria porque, em sua avaliação, não existem políticas públicas para garantir a adoção de todas medidas necessárias para que a escola tenha, efetivamente, uma educação antirracista, que precisa fazer parte do projeto político pedagógico da escola.

A professora Luana Tolentino, da UFMG, defende que nesses quase 20 anos da lei, o que se vê é o protagonismo de professores da educação básica que, para ela, têm sido os grandes responsáveis pela efetivação da lei em alguma medida.

"Para alcançarmos o objetivo de superar o racismo na educação, além do trabalho diário dos educadores, é necessário um maior compromisso dos agentes públicos, por meio de cursos de formação continuada de professores, de programas de valorização docente. É necessário também maior atenção para o trato dessas questões nos cursos de licenciatura que formam os professores. Contudo, sem a conscientização, sem o engajamento, sem o entendimento que não podemos conceber que crianças e jovens continuem sendo excluídos dos espaços escolares em razão da cor da pele, dificilmente iremos avançar."

Além disso, pontua Jacyara Silva, vivemos numa sociedade racista estrutural e institucional, na política, na economia, no judiciário. "Não é uma lei sozinha que vai transformar e mudar toda uma sociedade. Por isso, é preciso combater o racismo em todos os espaços educativos, e falo também da família, da igreja, do clube."

Jacyara sustenta ainda que a luta não é apenas dos negros, como se o racismo não fosse problema de toda a sociedade. Luana concorda:

"Não dá mais para dizer que não se tem noção do racismo de todo dia. Embora permaneça incrustado no imaginário social a ideia de que vivemos em uma sociedade harmônica, sem conflitos, sem desigualdades raciais, diariamente chegam ao nosso conhecimento casos, estatísticas, reportagens que evidenciam o quanto o racismo assombra, estrutura o nosso país. No meu entendimento, 'não ter noção do racismo de todo dia' é fruto de uma escolha pessoal, de escolhas institucionais, contribuindo para a perpetuação do racismo, para a manutenção da sociedade violenta e desigual em que vivemos", destaca a professora da UFMG. 

O QUE DIZ A SEDU

Na estrutura da Secretaria de Estado da Educação (Sedu) existe, atualmente, uma gerência voltada para as questões relacionadas aos povos indígenas e quilombolas. Titular da área, Valquíria Santos Silva diz que, desde 2019, a atual gestão começou a implantação de um programa de enfrentamento ao racismo nas escolas da rede, com a definição de algumas estratégias ouvindo profissionais, militantes de movimentos sociais, particularmente dos negros, além de fazer pesquisas e atender demandas. 

Uma das primeiras medidas foi instituir uma comissão permanente de estudos afro-brasileiros, com especialistas para a implantação da lei 10.639/2003. A gerente conta que a Sedu tem promovido encontros de formação da temática racial e foram feitos grupos de estudos para ações de enfrentamento ao racismo.

Em 2021, segundo Valquíria, a secretaria promoveu um curso para todo profissional da educação básica, inclusive das redes municipais, abordando as relações étnico-raciais. Para 2022, está sendo elaborado um caderno orientador para trabalhar o currículo sob essa perspectiva. O material deve ser distribuído para os educadores no segundo semestre. Há também ações voltadas para os gestores escolares visando à equidade racial. 

Sobre os episódios na escola Aflordízio de Carvalho, a  Superintendência de Educação de Carapina informou, em nota da assessoria Sedu, que assim que tomou conhecimento dos fatos, a direção da unidade convocou as famílias para uma conversa e a situação foi resolvida.

"De acordo com o Regimento Comum das Escolas, nessas situações, a gestão escolar dialoga com os envolvidos. Esclarece ainda que a Sedu possui o Programa de Enfrentamento ao Racismo nas escolas da Rede Pública Estadual do Espírito Santo, que estabelece como um de seus propósitos a produção de materiais didáticos e orientadores que subsidiem os profissionais da educação no processo cotidiano de construção e reafirmação de valores, posturas, práticas e projetos pedagógicos antirracistas nas escolas da Rede Estadual de Ensino", diz a nota. 

NOS MUNICÍPIOS

A Secretaria de Educação de Vitória (Seme) afirma, em nota, que tem no seu organograma uma das mais antigas Comissões de Estudos Afro-brasileiros, bem como a Comissão de Educação das Relações Étnico-Racial. As duas comissões, aliadas a outras coordenações da secretaria, dialogam com movimentos sociais, desenvolvem ações formativas para profissionais da Educação, estudantes e demais membros da comunidade escolar no que tange às questões relacionadas ao combate ao racismo.

Para 2022, no processo de formação continuada oferecido pela Seme, estão previstos quatro minicursos ofertados aos profissionais da rede municipal de ensino de Vitória: "A literatura como potencial antirracista", "A África está em nós", "Os desenhos, quadrinhos e HQs na perspectiva racial", e "Corporeidade: danças, jogos e brincadeiras em uma perspectiva racial". Além de dois seminários: "Práticas Antirracistas na Educação" e "IV Seminário Interno: Educação das Relações Étnico-Raciais".

Em 2021, foram realizados o minicurso "Práticas antirracistas na Educação", 1ª e 2ª edições; III Seminário de Educação das relações étnico-raciais; Formação Educação das Relações Étnico-Raciais: Introdução à Temática, reunindo 557 participantes.

"As comissões Ceafro e Cerer atuam em espaços formativos no formato de curso e minicursos com eixos diferenciados, promovem ações com estudantes e profissionais nas escolas, assessorias, seminário interno, intercâmbio formativo com outras gerências e universidades, tutoriais, visitas às unidades escolares dos participantes das formações, análises técnicas com pareceres sobre livros, e ainda realizam, em parceria com o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB/Ufes), estudos e pesquisas com ênfase nas práticas pedagógicas para a equidade racial", diz outro trecho da nota.

Sobre o episódio no CMEI Ana Maria relatado pela mãe da Malu, a Seme disse, também em nota,  que repudia qualquer forma de preconceito e trabalha, com seriedade, nas 103 unidades de ensino do município numa perspectiva de educação antirracista, tendo apoio da Ceafro e da Cerer.

"Na manhã desta sexta-feira (27), uma equipe técnica da Seme, acompanhada da coordenação da Ceafro, esteve na unidade de ensino para apurar o relato. As formações sobre práticas antirracistas na Educação já haviam ocorrido naquele Centro Municipal de Educação Infantil (Cmei). Além disso, a diretora relatou que fez diversos atendimentos à mãe da criança devido ao quadro de restrição alimentar e que, em nenhuma situação, foi relatado à direção do Cmei o que teria ocorrido na sala de aula. A Seme informa ainda que a professora não está mais na unidade de ensino, pois se aposentou no último dia 1º", finaliza a nota. 

A Prefeitura da Serra informa, por meio de nota da Secretaria de Educação, que o setor de Coordenação de Estudos Étnico-raciais possui um plano de ações atualizado para o decorrer do ano e ações que são exercidas por demanda, baseadas nas experiências vividas e na avaliação do ano anterior, propondo ações que visam ampliar e melhorar a qualidade do trabalho desenvolvido, bem como estabelecer novas parcerias e aprimorar as já existentes.

Há também revisão da proposta curricular para incluir a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena em todo o currículo escolar e educação das Relações Étnico-Raciais por meio da literatura infantil com temática da cultura africana e afro-brasileira, novembro Negro na Serra em parceria com o Conselho Municipal do Negro (Conegro).

Em Cariacica, uma das iniciativas é um prêmio para professores e gestores das escolas da rede. Em 2022, segundo a assessoria da prefeitura, a premiação completa 20 anos e tem por objetivo identificar, apoiar e dar visibilidade às práticas pedagógicas focadas na conquista de equidade e igualdade étnico-racial e de gênero na educação básica. 

A Secretaria Municipal de Educação de Vila Velha, segundo a assessoria, desenvolve durante todo o ano letivo ações de educação antirracista com alunos e servidores da área.

"O debate e aprofundamento das questões étnico-raciais estão sempre presentes nos momentos formativos para os professores da rede, além de terem assessoria sobre o tema. As ações perpassam pelas escolas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos, no qual o tema é trabalhado conforme a faixa etária", diz a nota. 

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