Após 24 anos internada em coma profundo no Hospital da Polícia Militar (HPM), "Clarinha", como ficou conhecida a mulher sem registro oficial atropelada em 2000, morreu na noite de quinta-feira (14). Por uma triste coincidência da vida, um dia antes da morte, a Justiça garantiu a ela o registro Civil.
Na quinta-feira, Clarinha passou mal ainda pela manhã e teve uma broncoaspiração. Apesar dos esforços da equipe médica, ela não resistiu.
De acordo com o Ministério Público do Espírito Santo (MPES), o órgão realizou um intenso trabalho por anos para buscar familiares ou conhecidos da paciente. Várias formas de identificação foram tentadas, mas não houve êxito. Clarinha recebeu o apelido por indicação de uma das enfermeiras que a acompanhou desde o momento em que chegou ao hospital.
Em 2022, as demandas relacionadas a paciente passaram a ser encaminhadas ao 10º Promotor de Justiça Cível de Vitória, Luiz Alberto Nascimento - que detém atribuição em matéria de registros públicos - em razão da necessidade de confeccionar o registro civil de nascimento dela, para que fosse reconhecida juridicamente sua existência, garantindo a ela o atendimento junto à área da saúde em instituições e órgãos públicos.
Deu-se início, então, a uma ação judicial em setembro de 2022 e na quarta-feira (13), o Juízo da 2ª Vara da Fazenda Pública Estadual e Municipal, Registros Públicos, Meio Ambiente e Saúde de Vitória julgou procedente o pedido “para determinar que seja lavrado o assento de nascimento tardio da pessoa apelidada por ‘Clarinha’, no Cartório de Registro Civil – Comarca da Vitória”.
"Infelizmente, a Promotoria de Justiça teve conhecimento através da imprensa que 'Clarinha' veio a óbito na data de 14/03/2024. Diante da situação, foi feito contato com servidores do Hospital da Polícia Militar do Espírito Santo para dar conhecimento da ação judicial e solicitar esclarecimentos sobre a pessoa que será responsável pela autorização judicial de liberação do corpo, sepultamento e demais providências relacionadas ao óbito. O Coronel da Polícia Militar Jorge Potratz que, ao longo dos anos, carinhosamente cuidou de Clarinha, prontificou-se a atuar como responsável. O MPES, por meio do 10º Promotor de Justiça Cível de Vitória, inclusive, prestará todo auxílio quanto ao pedido em questão", informou o órgão.
Diante da ação judicial, assim como, também tendo o coronel e médico Jorge Potratz se prontificado em ser responsável pelo pedido de autorização judicial para liberação de corpo, sepultamento e demais providências relacionadas ao óbito, o Ministério Público acredita que Clarinha não será enterrada como indigente.
"Será feita solicitação judicial para que sua certidão de óbito seja lavrada em nome de 'Clarinha', contendo informações como o local definitivo do sepultamento do corpo, além do registro fotográfico e papiloscópico dela, a fim de viabilizar eventuais esclarecimentos caso surja, no futuro, fato novo. Inclusive, será solicitada a coleta de material genético para eventuais exames", disse o MPES.
Na sexta-feira (15), três famílias entraram em contato com o MPES manifestando interesse na realização de exame de DNA com a paciente para confirmar possível parentesco. O Ministério Público busca junto aos órgãos competentes auxílio com relação a essas demandas.
Além disso, segundo o coronel Jorge Potratz, um homem foi ao Departamento Médico Legal (DML), em Vitória, pedindo um exame de DNA pois poderia ser filho de Clarinha. Por conta disso, o sepultamento e enterro da paciente deve demorar mais alguns dias para acontecer.
Em nota, a Polícia Científica (PCIES) informou que o corpo permanece no DML de Vitória e aguarda o andamento dos trâmites relacionados ao sepultamento iniciados pela Polícia Militar junto ao Ministério Público Estadual (MPES).
"A questão do nome ajuda muito, ela não vai mais ser sepultada como 'não identificada' e isso pode ajudar em visitações futuras. Já tem tudo organizado para o velório dela, só precisamos do declaração de óbito e com isso programar o sepultamento", disse o coronel.
A informação e confirmação da morte foi comunicada pelo próprio coronel Jorge Potratz, médico que cuidou da paciente e sempre esteve ao lado dela nestas mais de duas décadas. Emocionado, ele falou sobre a tristeza de não ter resolvido o "mistério de Clarinha" e não ter conseguido encontrar a família para oferecer esse encontro.
“É muito triste ter esse desfecho, mas temos que lembrar que Deus tem um propósito. Em um futuro vou entender tudo isso. Tentamos tornar a vida dela, que é tão difícil, com mais dignidade. É triste esse fim”, enfatizou.
Atropelada no Dia dos Namorados, em 12 de junho de 2000, sem portar qualquer documento de identificação, o caso ganhou repercussão após uma reportagem do Fantástico, exibida no ano 2016, em que um jornalista do Paraná procurou o coronel Potratz para informar que conhecia uma família que poderia ser a da paciente.
O mistério que se manteve há mais de duas décadas no Espírito Santo quase foi solucionado em 2021. Isso porque a identidade de "Clarinha" esteve ligada a um possível rapto de uma criança em Guarapari no final dos anos 70. Porém, as investigações concluíram que ela não era o bebê que sumiu naquela época.
A conclusão se baseou em análises comparativas dos perfis genéticos da Clarinha e dos pais da criança sequestrada. A família é de Minas Gerais, mas passava férias no litoral capixaba quando houve o sequestro.
Desde que Clarinha chegou ao hospital, sem documento de identificação, várias tentativas de localizar familiares já foram feitas. Pessoas de diversas partes do país, sobre as quais havia indícios de parentesco, submeteram-se a exames de DNA.
O caso ganhou mais repercussão após uma reportagem do Fantástico, em 2016, e 102 famílias procuraram o MPES tentando identificar Clarinha como uma possível parente desaparecida. Desse total, 22 casos chamaram mais atenção, pelas fotos ou pela similaridade dos dados próximos ao perfil da mulher internada.
Depois de uma triagem mais detalhada, aponta o MPES, quatro casos foram descartados, devido à incompatibilidade de informações ou pelo fato de as pessoas procuradas já terem sido encontradas. O Ministério Público dividiu as 18 pessoas restantes em dois grupos para a realização dos exames de DNA. No entanto, os resultados mostraram-se incompatíveis para traços familiares.
A mulher identificada como "Clarinha" foi atropelada no dia 12 de junho de 2000 quando, segundo testemunhas, fugia de um perseguidor. Ela correu para o meio de uma avenida movimentada no Centro de Vitória e foi atingida por um ônibus. Socorrida, foi levada para o Hospital Estadual de Urgência e Emergência (HEUE) São Lucas, no qual foi submetida a diversas cirurgias.
Contudo, ela nunca se recuperou do trauma e está em como profundo desde o acidente. Sem documento de identidade e digitais desgastadas, não foi possível localizar um parente. Nem mesmo as testemunhas do atropelamento souberam informar de quem se tratava aquela jovem na época. Clarinha foi transferida para o HPM, hospital onde permaneceu até a morte. Inclusive, foi no local que recebeu o apelido da equipe de saúde que a acompanha.
Clarinha tem marcas de cesárea, o que indica que já teve filho. Pelas estimativas dos profissionais, ela teria mais de 40 anos.
O MPES passou a atuar no caso a partir de demanda recebida do HPM, que pediu a ajuda para identificar Clarinha e seus familiares. A procuradora de Justiça Edwirges Dias, que na época atuava como promotora de Justiça Cível de Vitória, expediu ofícios para diversas instituições públicas que integraram uma campanha para saber quem é “Clarinha”.
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