A rotina dos catadores de materiais recicláveis de Vila Velha mudou desde o dia 28 de março, quando uma lei que restringe a circulação dos trabalhadores em partes importantes do município foi publicada pela prefeitura, causando manifestações imediatas de diversos setores da sociedade. Dois meses após a formalização de uma lei proposta pela prefeitura, quem vai às ruas em busca de sustento afirma que passou a conquistar uma renda menor e ainda nota um aumento no preconceito e nas abordagens da Guarda Municipal. "Falam que somos ladrões, mas só a Justiça pode falar isso. A maioria tem família", disse um dos trabalhadores.
A piora das condições de trabalho, segundo os catadores, é única e exclusivamente causada pela lei aprovada no município, com aval da Câmara de Vereadores. De acordo com o texto, é proibida a circulação dos carrinhos no Centro da cidade, em vias rurais, na orla e em um raio de 300 metros dos terminais de ônibus.
A proibição de circularem em determinados trechos da cidade reflete no bolso, segundo os trabalhadores. O descumprimento da regra pode resultar até em apreensão do carrinho. Para Rafael Oliveira, de 30 anos, que trabalha como catador de material reciclável há nove meses, a mudança provocou um impacto na renda e na rotina de trabalho.
Rafael Oliveira
Catador de recicláveis há nove meses
"A orla da praia tem os melhores materiais. Os prédios tiram os recicláveis no horário certo, e a gente se encontra lá. Os catadores caminham, andam, não podemos ficar em um bairro só. Acho nada a ver essa lei, ela atrapalhou muito. Falam que somos ladrões, mas só a Justiça pode falar isso. A maioria tem família"
Rafael Oliveira contou que pessoas como ele, que trabalham com materiais recicláveis, costumam se programar de acordo com a disponibilidade dos resíduos em diferentes partes da cidade. Em alguns dias da semana, eles passavam pela praia, por exemplo. Com a publicação da lei, a orla deixou de ser uma opção.
O trabalhador afirmou que já foi impedido por guardas municipais de circular pela cidade. Em uma determinada ocasião, após a publicação da lei, guardas teriam o impedido de transitar pela orla de Vila Velha. Rafael relata que tem voltado com menos dinheiro para casa. "Minha renda caiu muito, o que me preocupa. Não existe isso aí. Eu não concordo", afirmou.
Quem está na rua há mais tempo também é capaz de confirmar a impressão: com menor circulação, a renda também caiu. Romildo Santos tem 25 anos - há três, trabalha como catador de recicláveis - e também relatou ter sofrido abordagem semelhante.
Romildo Santos
Catador de recicláveis há três anos
"Quando a gente quer ir para o lado da praia, a Guarda fala que não pode, fica muito difícil. Como é que a gente vai se sustentar, ter nosso dinheiro, nossa renda? Na praia tinha material. Para evitar a Guarda, eu já nem vou muito"
Não há um número consolidado, mas a Prefeitura de Vila Velha contabiliza que o município tenha 180 catadores de materiais recicláveis cadastrados no sistema. O cadastro permite que a prefeitura tenha conhecimento da atuação de cada um e regularize o serviço.
Catadores de recicláveis em Vila Velha convivem com lei que restringe circulação
Na avaliação da representante dos depósitos de recicláveis de Vila Velha, Daniela Santana, a lei causou queda na renda dos trabalhadores. Segundo ela, não houve contato da Prefeitura de Vila Velha com os depósitos de recicláveis antes da publicação da lei. A representante pontua ainda que há uma generalização injusta com os trabalhadores, os classificando como responsáveis por furtos, por exemplo.
Padre Kelder aponta perseguição de trabalhadores: "Fica muito visível"
Logo após a publicação da lei, o Vicariato Para Ação Social Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória, coordenado pelo padre Kelder Brandão, criticou em uma carta pública a lei que restringe a circulação dos trabalhadores. O padre, inclusive, tratou do assunto em meio à Festa da Penha, realizada em Vila Velha no mês de abril.
Procurado pela reportagem de A Gazeta, o padre Kelder Brandão apontou que os catadores de materiais recicláveis sofrem uma perseguição em Vila Velha e incluiu a lei no que classificou como "política da morte".
Padre Kelder Brandão
Coordenadr do Vicarito Para Ação Social Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória
"Percebemos que há em curso uma política, que chamamos de necropolítica ou política da morte, que se volte com muita eficiência contra os mais vulneráveis. Temos perseguição contra as pessoas que sobrevivem da coleta de materiais recicláveis. No meio urbano, isso fica muito visível"
Para o padre, a lei demonstra um "perfil segregacionista" dos políticos do município. Padre Kelder Brandão acredita que a lei aprovada em março não seja um fato isolado. "Isso significa que as autoridades são autoridades segregacionistas e querem determinar os marcos da cidade onde os pobres podem ou não circular. Aliás, esta é uma forma de necropolítica", completou.
Defensoria pediu retirada da lei e a classifica como "grave violação de direitos"
Dias após a publicação da lei, a Defensoria Pública do Espírito Santo ingressou com uma Ação Civil Pública, com tutela de urgência, para que a aplicação da lei não acontecesse. A defensoria classificou que a lei configura "grave violação de direitos".
De acordo com o defensor público Hugo Fernandes, o fato de o projeto de lei não ter sido amplamente debatido e divulgado antes da publicação deu "pouca margem" à atuação das esferas de Justiça e da própria defensoria.
"A questão é que, em um processo de debate ou construção legislativa, é possível a participação da população e órgãos públicos. Diante da lei já em vigor, pouca margem de trabalho restou à defensoria", afirmou.
Hugo Fernandes
Defensor público no Espírito Santo
"Neste caso, chama a atenção porque temos um grupo que está potencialmente prejudicado em relação à legislação. Diante da lei já em vigor, a alternativa para a defensoria pública era o ajuizamento de uma ação coletiva. Pedimos a suspensão da aplicação da lei e também a construção de políticas para a categoria"
Houve ainda um ofício enviado à Procuradoria-Geral da República sobre o assunto. O defensor público afirmou que foi feita ao menos uma reunião, mas a prefeitura, apesar de ter sido convidada, não enviou representantes.
"Esperamos que haja sensibilidade para que legislação não prejudique uma parcela tão vulnerável da sociedade e que tem uma função importante", completou.
O que diz a Prefeitura de Vila Velha
Com os questionamentos feitos pela Defensoria Pública, pelo padre Kelder Brandão e principalmente pelos trabalhadores que lidam com os materiais recicláveis, a reportagem de A Gazeta procurou a Prefeitura de Vila Velha para perguntar se há debate sobre a lei e como as regras estão funcionando.
De acordo com a secretária de Assistência Social de Vila Velha, Letícia Goldner, a lei, apesar de estar em vigor, ainda depende de uma regulamentação. Isso deve determinar os responsáveis pela fiscalização, segundo a secretária.
"Na regulamentação vai conter tudo isso. A gente vai demonstra que a lei vem para melhorar a cidade, não para prejudicar a cidade ou as pessoas", detalhou.
Sobre os questionamentos feitos a respeito da queda na renda dos trabalhadores e a comunicação, dois detalhes que geraram reclamações, Letícia Goldner afirma que a prefeitura tem dialogado com o grupo e que a regularização do trabalho não deve causar diminuição da renda. Letícia Goldner afirmou ainda que a administração vai entregar melhores condições de trabalho aos catadores.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.