Cinco anos após cerca de 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração descerem pelo Rio Doce até a sua foz, em Linhares, rio e mar ainda sofrem com os impactos, que vão da contaminação de metais até o desaparecimento de espécies de peixes. Os três ambientes - dulcícola (água doce), costeiro e marinho -, apresentaram transformações negativas, aponta estudo. Foram afetados os sedimentos, a água e a biota (comunidade de seres vivos). Houve contaminação, principalmente, por ferro.
Foi registrado ainda o desaparecimento de espécies, com larvas de peixes apresentando até destruição do trato digestório, sem contar o surgimento de espécies oportunistas, o que ameaça a vida de outros peixes. Foram afetados ainda os mangues, restingas, praias, e unidades de conservação. E a chamada megafauna - aves, mamíferos e tartarugas marinhas - que vivem no entorno do Doce.
É o que aponta Nota Técnica 15/2020, da Câmara Técnica de Conservação e Biodiversidade (CTBio), que é subordinada ao Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio) e ao Comitê Interfederativo (CIF), produzida a partir da avaliação do relatório anual (2018 a 2019) do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA), da área ambiental I, na porção capixaba do Rio Doce e região marinha e costeira adjacente. O documento foi divulgado nas últimas semanas.
O estudo foi realizado por pesquisadores da Rede Rio Doce Mar (RRDM), que reúne 28 instituições, incluindo universidades federais do Brasil, e que realiza o monitoramento do impacto causado na biodiversidade aquática em ambientes continentais (rios, estuários, lagos) e marinhos (praias, costa e mar), pelo rompimento da barragem, no trecho capixaba.
O desastre ambiental aconteceu em 5 de novembro de 2015, quando ocorreu o rompimento de uma barragem de mineração da Samarco na cidade mineira de Mariana. A enxurrada de lama matou 19 pessoas, soterrou o vilarejo de Bento Rodrigues, destruiu outras cidades e afetou dezenas de comunidades ao longo dos mais de 600 quilômetros até chegar ao mar, no Espírito Santo.
Levantamento do Ministério Público Federal (MPF) aponta que 41 cidades foram afetadas em Minas Gerais e no Espírito Santo, três reservas indígenas foram atingidas, houve degradação em 240,88 hectares de Mata Atlântica (cada hectare equivale a um campo de futebol). Foram coletados 14 toneladas de peixes mortos. A lama alcançou a foz do Rio Doce, em Linhares, no dia 21 e novembro, dezesseis dias após o desastre ambiental.
CONFIRA O IMPACTO DA LAMA DE REJEITOS DE MINERAÇÃO EM CADA AMBIENTE
1 - AMBIENTE DULCÍCOLA (ÁGUA DOCE)
A calha principal do Rio Doce, que é por onde ele passa, foi a área que sofreu o maior impacto causado pela contaminação por metais, tanto no período seco quanto no chuvoso. “Especialmente em relação ao sedimento e a biota (conjunto de todos seres vivos no rio)”.
É apontado que há evidências do envolvimento de metais característicos do rejeito da mineração nos impactos negativos observados na estrutura, composição e funcionamento das comunidades biológicas. “A calha do Rio Doce apresenta também os maiores índices de impactos biológicos, mensurados por meio da resposta de biomarcadores e da toxicidade das amostras ambientais (água e sedimento) para os organismos-teste”, diz o estudo.
A vida no rio sofreu impacto crônico, favorecendo o desenvolvimento das chamadas espécies exóticas ou oportunistas (generalistas), reduzindo assim a diversidade funcional no rio. “A biota dulcícola sofreu impacto agudo ao nível de espécies, com desaparecimentos de algumas, na área impactada, com eliminação das espécies menos tolerantes – sobretudo espécies sésseis e de pouca mobilidade”, diz o estudo.
E quando é possível a comparação com dados levantados antes do desastre ambiental, os resultados indicam relação causal entre o declínio da biodiversidade e os efeitos do rejeito, “evidenciando que as espécies nativas sofreram maior impacto, apresentando níveis mais elevados de concentrações de metais acumulados no fígado e nas brânquias do que as espécies exóticas”, aponta.
Os resultados indicam ainda que essas espécies exóticas de peixes estão dominando os ambientes, principalmente a calha do Rio Doce. E como elas são consideradas resistentes a ambientes alterados, sua dominância foi considerada indicadora da qualidade do ambiente e do impacto da lama. “Portanto, uma das conclusões do relatório foi que a assembleia de peixes estaria ameaçada por efeitos conjuntos de alterações ambientais provocadas por barragens, espécies exóticas e derramamento da lama oriunda do rompimento da barragem de Fundão”, diz o texto.
No trecho do chamado ambiente dulcícola - de água doce -, o estudo deixa claro que há evidências de impacto negativo e significativo na organização energética “entre níveis tróficos basais dos sistemas avaliados” (o nível alimentar) e ainda importantes alterações negativas nas integridades abiótica (são os elementos físicos, químicos ou geológicos do ambiente) e biótica (comunidades vivas) dos ambientes.
ÁREA COSTEIRA MARINHA
A pluma de rejeitos de mineração chegou à Foz do Rio Doce, localizada em Linhares, no dia 21 de novembro de 2015, atingindo o mar. O estudo aponta que houve um “aporte, sem precedentes, de uma carga de sedimentos, e metais, que se distribuiu ao longo do litoral, adentrando pelos movimentos das marés, às demais desembocaduras de rios, ao Sul e Norte da foz”.
Diz ainda que é possível afirmar que o desastre ambiental resultou, nos meses subsequentes, em uma alteração aguda da condição oligotrófica (produção de alimentos) da área marinha. Esta condição apresentou implicações diretas na biota, ou seja, refletiu na vida dos seres vivos da área, “refletindo os resultados obtidos em 2015, 2016 e 2018-2019 do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA) no monitoramento da biota, no que se refere aos aspectos qualitativos e quantitativos em diferentes níveis tróficos (alimentar)”.
Para obter os resultados, foi estabelecido, relata o estudo, um critério geoquímico para identificação da ocorrência do sinal do rejeito no ambiente marinho. Ele é baseado nas concentrações de níquel (Ni), cobre (Cu), chumbo (Pb),cromo (Cr), ferro (Fe), alumínio (Al), manganês (Mn) e zinco (Zn).
Considera que há sinal de rejeito quando há um incremento a partir de 10% na concentração de pelo menos 6 dos 8 metais que compõem o critério, em relação aos valores de linha de base anterior ao desastre ambiental.
Com base neste critério, foi identificado que na Área de Proteção Ambiental (APA) Costa das Algas, em Aracruz, 80% das estações de monitoramento apresentaram sinal do rejeito. Na região da foz, esta proporção atingiu 100% das estações analisadas. “Ainda, se considerado o critério de um incremento a partir de 50% na concentração dos metais, 73% das estações continuaram apresentando sinal de rejeito no setor APA Costa das Algas e 82% no setor Foz”, diz o texto.
CONTAMINAÇÃO POR METAIS
A maior contaminação, segundo o estudo, foi observada para a presença de ferro, e que resultou do aporte “substancial deste elemento”, em função do rompimento da barragem. “Também foi identificada, de forma geral, a presença do cromo, níquel e o cádmio em concentrações deletérias (nocivas) para a biota em todos os testemunhos avaliados”.
É apontado que tal contaminação de metais alterou a estrutura das comunidades bentônicas, fitoplanctônicas e zooplanctônicas na maior parte dos pontos amostrados. “Porém, mais intensamente no setor chamado Foz do Rio Doce e nas estações amostrais mais próximas à costa, ou seja, nas áreas com maior influência da pluma do rio Doce”, diz o texto.
De modo geral, é relatado que houve dominância de grupos taxonômicos e/ou espécies resistentes, indicadores de impactos ambientais. “As áreas mais próximas à desembocadura do Rio Doce foram caracterizadas pela ocorrência de vestígios de organismos bentônicos (conchas, carapaças, e esqueletos, etc.) em maior proporção do que organismos vivos, o que foi interpretado como evidência de impacto”, diz o estudo.
Em relação aos sedimentos de rejeitos de mineração e o impacto na biodiversidade, o levantamento na Foz do Rio Doce mostrou o potencial de uma alta frequência de material em ressuspensão junto ao fundo, o que pode ter impactado diretamente a macrofauna bentônica (organismos que vivem no fundo, nos sedimentos, do rio ou mar). “Os resultados obtidos apontam para fundos com lamas fluidas e uma constante ressuspensão que afetam a biota em geral”.
É apontado ainda que os resultados obtidos a partir da análise dos testemunhos estratigráficos (do sedimento de dejetos) já apresentaram informações para a compreensão dos impactos associados ao rompimento da barragem, “indicando um enriquecimento recente do sedimento com elementos metálicos em concentrações com potencial efeito tóxico para a biota”, destaca o estudo.
PEIXES
Os resultados apontam impactos em larvas de peixes, que tiveram destruição do trato digestório. Fato que foi mais frequente na região da foz e na APA Costa das Algas. Também ocorreu uma diminuição na abundância de larvas, quando comparados os resultados obtidos antes e após o aporte dos dejetos de mineração na área marinha.
O relatório indica que há uma relação de causa e efeito entre a mudança na estrutura física das larvas e a lama de rejeitos e outras substâncias levadas para a área marinha. “A ocorrência de larvas de peixes com trato digestório destruído na região marinha e costeira adjacente após a chegada da pluma é uma evidência do impacto causado pelo acidente."
Outra preocupação vem da presença das chamadas espécies oportunistas (r-estrategistas). Segundo o estudo, elas apresentam características que favorecem sua dominância em comunidades de ambientes sob estresse ecológico, como tamanho relativamente reduzido, ciclo de vida curto e alta capacidade reprodutiva, o que lhes confere a capacidade de proliferar em condições de estresse ambiental (espécies oportunistas). “O padrão observado sugere que o ambiente ainda está sob efeito de estressores (por exemplo contaminantes), o que é reforçado pelos resultados obtidos em outros subprojetos, outras parte do estudo”.
MANGUEZAIS - CARANGUEJOS CONTAMINADOS
No caso dos manguezais, é dito que o estudo vem sendo feito há um ano, mas que ele já indica que houve aporte de ferro (Fe) e manganês (Mn) em condições capazes de alterar a integridade biológica e a qualidade ambiental deste sistema. “O que pode resultar em perdas econômicas e culturais”, aponta o estudo.
Foi verificado que houve contaminação em todos os tecidos (brânquias, hepatopâncreas e músculo) dos caranguejos avaliados, sendo que a contaminação parece estar relacionada, principalmente, com os seguintes metais: ferro (Fe), cromo (Cr), cobre (Cu), manganês (Mn) e zinco (Zn). “A correlação entre metais e os biomarcadores mostrou que existiram diversas correlações positivas, evidenciando uma relação causa/efeito entre a bioacumulação dos metais nos tecidos dos caranguejos e o surgimento de danos bioquímicos nos mesmos”.
RESTINGAS
São relatadas evidências de alterações nas composições florísticas e alterações nos mecanismos reprodutivos delas, que podem causar risco à redução populacional de algumas espécies. “Porém, não ficando ainda muito claro a dimensão dos resultados obtidos e dos impactos associados”.
PRAIAS
Aqui, novamente, há indicativos de que a chegada da lama de rejeitos às praias afetou a fauna bentônica, os seres que vivem no fundo. “Indicando que houve uma drástica redução nos índices biológicos da macrofauna (riqueza, densidade e diversidade)”, aponta, destacando que houve ainda alteração de granulometria, declividades, entre outros fenômenos cíclicos.
Foram identificadas anomalias nas comunidades bentônicas, que são todos os organismos marinhos que vivem no fundo do mar, como as anêmonas, os corais, esponjas, estrelas-do-mar, até mesmo os camarões que vivem na areia. O relatório destaca que “os padrões ecológicos da comunidade bentônica apresentaram anomalias quando comparados aos padrões descritos na literatura, seja por desacordo com a tipologia da praia, seja pela presença excessiva de alguns metais”. Foram analisados os aspectos morfodinâmicos, sedimentológicos e geoquímicos.
AVES, MAMÍFEROS E TARTARUGAS MARINHAS
Organismos dos diversos grupos da megafauna, como aves, mamíferos e tartarugas marinhas, alguns ameaçados de extinção, frequentam a área impactada pelos dejetos de mineração, seja como área de vida, refúgio e alimentação.
Segundo as análises iniciais do monitoramento houve alterações de habitat, sensibilidade ao habitat mais impactado devido ao uso muito intenso e processos infecciosos incomuns derivados de provável supressão das reações imunitárias do organismo. “Um indicativo de impacto na saúde e debilidades geradas por fatores estressores para algumas espécies”.
Por serem espécies de vida longa, ou grande área de dispersão, serão necessários estudos mais longos para demonstrar as alterações observadas e comprovar os impactos, com possíveis perdas de diversidade genética, áreas de alimentação, gasto extra de energia, entre outros pontos.
UNIDADES DE CONSERVAÇÃO CONTAMINADAS
O relatório aponta contaminação por diversos metais e substâncias presentes nos rejeitos de minério, em níveis e concentração variáveis, em todas as unidades de conservação (UCs) avaliadas, tanto nos ambientes marinhos, quanto em manguezais e restingas. São relatados ainda diversos indicadores biológicos de impactos decorrentes de ações realizadas pelo homem.
Foram avaliados impactos nas seguintes UCs: Área de Proteção Ambiental de Setiba; Refúgio de Vida Silvestre Santa Cruz e Área de Proteção Ambiental Costa das Algas; Reserva de Desenvolvimento Sustentável Municipal Piraquê-Açu e Piraquê-Mirim; Reserva Biológica de Comboios e Terra Indígena de Comboios; Área de Relevante Interesse Ecológico do Degredo; Área de Proteção Ambiental Conceição da Barra; Parque Nacional Marinho de Abrolhos, Área de Proteção Ambiental Ponta da Baleia/Abrolhos e Reserva Extrativista de Cassurubá.
RENOVA: ÁGUA PODE SER CONSUMIDA
Por nota a Fundação Renova informa que a água do rio Doce pode ser consumida após passar por tratamento convencional em sistemas municipais de abastecimento. “É o que indicam os mais de 3 milhões de dados gerados anualmente pelo maior sistema de monitoramento de cursos d’água do Brasil”.
Acrescenta que o sistema foi criado pela Fundação Renova em 2017 para monitorar a bacia do Rio Doce, além de zona costeira e estuarina. “Todas as informações geradas sobre as condições do rio são compartilhadas com os órgãos públicos que regulam e fiscalizam as águas do Brasil.”
Destaca ainda que a “análise de amostras de água e sedimento de diferentes pontos do rio Doce aponta que a turbidez e a presença de metais na água registram médias semelhantes às do início de 2015 e que as condições da bacia são similares às de antes do rompimento da barragem de Fundão”. Diz ainda que a “comparação é possível porque, anteriormente, a qualidade das águas era analisada pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), que iniciou o monitoramento em 1997”.
Em relação ao rejeito existente no fundo do rio, a Renova relata que mais de 80 especialistas foram reunidos para desenvolver o Plano de Manejo de Rejeitos. “Um conjunto das soluções que prioriza o tratamento do rejeito no rio e seu entorno, sem que ele seja retirado, o que causaria um impacto ambiental ainda maior”.
Assinala ainda que o “rejeito não é tóxico, contendo essencialmente elementos do solo (rico em ferro, manganês e alumínio), sílica (areia) e água. O sedimento foi caracterizado como não perigoso em todas as amostras, segundo critérios da Norma Brasileira de Classificação de Resíduos Sólidos”, diz em nota.
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E que as pesquisas que monitoram o solo diretamente atingido pelo rejeito desde 2015 “mostraram que não há limitações ou riscos para o plantio em propriedades atingidas pelo rejeito da barragem de Fundão e que receberam ações de reparação”.
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