Sociedade entre muros
Com uma estrutura de minicidade, a Colônia de Itanhenga, que aqui chamamos de colônia dos excluídos, foi construída em 1935, em Cariacica, no Espírito Santo, para isolar pessoas diagnosticadas com hanseníase. Na época, a doença, que era chamada de lepra, não tinha cura e provocava medo e incômodo social. Na tentativa de contornar o problema, o governo brasileiro adotou uma política de internação compulsória, que se materializou na construção de colônias em todo o país. Entre 1920 e 1950, 40 complexos do tipo foram criados. Nelas, inúmeras famílias foram segregadas e condenadas a conviver com o estigma da doença. Apesar de não funcionar mais como um espaço de isolamento, a Colônia de Itanhenga guarda inúmeras histórias que serão contadas em cinco capítulos nesta reportagem especial.
Inaugurada em 11 de abril de 1937 para isolar pacientes diagnosticados com hanseníase no Espírito Santo, a Colônia de Itanhenga foi considerada um leprosário modelo. Com a estrutura de uma cidade, capaz de atender todas as faces da doença, tinha escola, dormitórios, hospital, cemitério e até prefeitura e uma delegacia.
A obra foi motivo de destaque em jornais e classificada pelo médico sanitarista Pedro Fontes como “a arma mais eficiente de combate à lepra”. Mas, diferentemente do que se almejava na época, a segregação passou longe de ser uma medida eficaz de combate à hanseníase.
Com a incidência de casos, viabilizou-se a construção de um espaço de internação compulsória em um terreno do governo estadual. De acordo com registros da época, o Estado contribuiu com 1.600 contos de réis para a obra, enquanto o governo federal deu 1.000 contos de réis.
“A ideia era de uma colônia agrícola e, como colônia, ela não teria só a casa dos internos, mas a casa do diretor, das freiras, dos funcionários. Além disso, a hanseníase era uma doença que causava incômodo social, então precisava de um terreno amplo e afastado. Ninguém queria um leprosário perto de um local povoado”, explica.
Sebastião Pimentel
Historiador
"A preocupação não era com o doente, a preocupação era com o são, de que forma ele poderia ser protegido e salvo"
Assim como outras colônias construídas no Brasil, Itanhenga foi dividida em três partes: zona limpa, com residência para os médicos e funcionários do local; zona neutra, onde ficavam os prédios da administração e o pavilhão de observação para casos suspeitos; e zona suja, reservada para as pessoas diagnosticadas com a doença.
Era na zona suja que ficava a maior parte dos edifícios da colônia como escola, refeitório, igreja, hospital, além de casas geminadas para os pacientes que eram casados e 12 pavilhões do tipo “Carville”, um modelo habitacional que foi trazido dos Estados Unidos.
Segundo a assistente social Dora Cypreste, toda a estrutura foi pensada para oferecer aos pacientes os serviços básicos necessários. Assim, eles não precisariam sair do local.
“Eles tinham o próprio prefeito, o próprio delegado, que eram escolhidos entre os doentes. Em época de eleição, levavam urnas específicas para lá. Era uma sociedade entre muros”, relata Dora, que foi diretora do hospital colônia.
Ao todo, 65 edificações foram erguidas na Colônia de Itanhenga, que hoje é chamada de Hospital Colônia Pedro Fontes, em homenagem ao médico.
INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA
Na época em que Itanhenga foi construída, a hanseníase não tinha cura. Por isso, o governo federal decidiu adotar uma política de internação compulsória. As pessoas diagnosticadas com a doença eram forçadas a se mudar para as colônias, sem saber, contudo, se algum dia sairiam de lá.
De acordo com registros históricos, 40 colônias foram inauguradas em todo Brasil entre 1920 e 1950, a maioria delas durante o governo de Getúlio Vargas.
“A segregação se deu por uma crença de contágio intenso da hanseníase, o que não acontece. Mas, na época, era a única forma de combater a endemia que se podia pensar. Devo lembrar que, quando os hospitais colônias foram construídos, a gente não tinha o conhecimento que tem hoje, a hanseníase não tinha cura”, explica Deps.
Aprisionados pela doença
1.592 pessoas foram internadas na Colônia de Itanhenga até 1962, quando a internação compulsória foi extinta por meio de decreto federal. Mesmo assim, o local recebeu pacientes até a década de 80.
ANADIR SCALZER QUINTINO, 68 ANOS
Poucos móveis cabem dentro do quarto de Anadir Scalzer, uma das remanescentes da hanseníase que, ainda hoje, vive nos pavilhões do Hospital Pedro Fontes. Aos 68 anos, ela quase não recebe visitas e só sai dali uma vez ao mês para ir a Campo Grande, Cariacica, fazer compras com uma sobrinha. Do tempo de internação compulsória, ela não guarda boas lembranças, costuma dizer que era uma prisão. Mesmo assim, quando os portões do hospital abriram, ela não quis sair de lá. “Eu me acostumei, aqui é a minha casa”, afirma. Anadir construiu poucas relações fora daquele espaço. Ela entrou na colônia quando tinha 17 anos, deixando uma filha de dois meses para trás. “Não pude nem dar um banho nela”, lamenta. A separação impediu que mãe e filha criassem um laço. Hoje, o contato entre elas se dá, na maior parte do tempo, por telefone. Entre uma ligação e outra, Anadir revela a esperança de um dia ser chamada de mãe. “Ela liga e fala ‘oi, Ana’. Eu já perguntei por que ela não me chama de mãe. Ela diz que mãe, para ela, é a outra, a que criou. Eu não pude criar, né? Mas eu fico pensando, quem sabe um dia ela me chama de mãe. Seria tão bom”, desabafa.
JOSÉ FERNANDES PEREIRA, 70 ANOS
Da varanda de casa, a poucos metros dos pavilhões onde um dia viveu, José Fernandes, mais conhecido como Zé Pretinho, observa as ruas vazias da colônia. “Isso aqui era cheio de gente”, comenta. Zé Pretinho chegou lá aos 13 anos junto com o pai. Teve o diagnóstico de hanseníase, fez o tratamento e voltou para casa. Anos depois, retornou ao hospital com a doença já avançada. Lá, se casou, teve dois filhos e se curou da doença. Por ter sido diagnosticado com hanseníase, Zé Pretinho foi privado de estudar e não aprendeu a ler. “Ninguém aceitava a gente na escola, não. Era muito preconceito”, afirma. O nome é a única coisa que o ex-interno da colônia aprendeu a escrever, mas ele não esconde o incômodo que sente quando tem que assinar qualquer documento. “As pessoas ficam olhando para as minhas mãos e falando.” Provavelmente, falam dos dedos atrofiados de Zé Pretinho, que entregam as sequelas da hanseníase.
EBIS GROSSMANN, 74 ANOS
O nome Pedro Fontes acompanha a vida de Ebis desde 1966, quando ela chegou à Colônia de Itanhenga, aos 18 anos. Hoje, aos 74, a aposentada desfruta de uma casa de cinco cômodos com quintal na rua Pedro Fontes. O terreno fica a menos de 1 km do hospital e foi doado a Ebis na década de 80 como parte de uma política de reintegração de ex-internos. Ali, ela teve o filho caçula, Hércules, o único que não foi separado dela ao nascer. “Ele, eu consegui criar como mãe mesmo, porque minhas duas filhas foram tiradas de mim assim que nasceram e levadas para o educandário”, lembra. Durante o período de internação, Ebis via as filhas duas vezes por ano: no Dia das Mães e no Natal. Era quando as crianças eram levadas até o portão do hospital. “Mas a gente nem sabia qual era a filha da gente, eles que falavam lá”, conta. Ebis se apegou à fé para superar o isolamento. Durante o período de internação, buscava aconselhamento com Padre Matias, um alemão que veio ao Brasil para servir nas colônias. Hoje, ela zela pela Igreja de São Geraldo, a poucos metros da casa onde mora. “Tenho muito a agradecer a Deus. Apesar de tudo, eu sobrevivi.”
VALTAIR JOSÉ DE OLIVEIRA, 70 ANOS
Valtair, ou Baianinho, como costuma ser chamado, chegou à Colônia de Itanhenga acreditando que, em pouco tempo, voltaria para Teixeira de Freitas, sua cidade natal. “Quando falaram que não podia mais sair de lá, eu pensei em fugir.” Ele não foi o único. Durante o período de internação compulsória, mais de 300 fugas foram registradas. Muitos pacientes não conseguiam conviver com o isolamento e alguns chegaram até a se matar. “Eu presenciei muita gente que tirou a própria vida, que passou a faca na goela. Não era fácil, tinha dia que dava vontade de morrer”, conta. Baianinho foi internado quando tinha 21 anos. Chegou com o pai, mas não saiu com ele. Lá dentro casou e teve dois filhos, que foram levados para o educandário. A esposa, que também era interna, morreu anos depois. Baianinho teve a chance de viver o amor pela segunda vez ao conhecer Creuza, filha de hanseniano, com quem hoje ele é casado. Os dois moram na casa onde viviam os diretores do hospital. Lá, cultivam um grande quintal e histórias que ultrapassam os muros da colônia.
Órfãos de pais vivos
A lei federal de 1949, que estabeleceu o isolamento compulsório de pessoas diagnosticadas com hanseníase, determinou também a separação dos pacientes e seus filhos. Centenas de crianças foram segregadas. Algumas ficaram sob os cuidados de parentes, e muitas outras foram enviadas para educandários, construídos para abrigar filhos de hansenianos.
Era julho de 1961 quando Mariana (nome fictício) nasceu no Hospital Colônia Pedro Fontes, em Cariacica. Mas, ao contrário da maioria dos bebês, que são entregues às mães após o parto, ela não pôde nem dar a primeira mamada. "Nascia, enrolava em um paninho e levava embora", lembra.
Mariana é filha de hansenianos e foi uma das centenas de crianças privadas de conviver com a família devido a uma lei federal que determinava a segregação de pessoas diagnosticadas com hanseníase. Assim, cresceu sem conviver com os pais e foi vítima de uma política de alienação parental.
Sem ter quem cuidasse dela e dos irmãos, Mariana morou por anos no Educandário Alzira Bley, uma espécie de "orfanato" construído na década de 40 para abrigar filhos de hansenianos. O nome do local é uma homenagem à esposa do então interventor federal no Espírito Santo, João Punaro Bley.
Até 1979, o local recebeu 300 recém-nascidos e 1.547 crianças de várias idades, segundo registros do local. Algumas delas cresceram lá dentro e só saíram ao completar a maioridade. No caso dos homens, isso acontecia aos 18 anos. Já para as mulheres era aos 21.
"Cada idade tinha uma guardiã, os maiores cuidavam dos menores. Eu trabalhei em todos os setores: na cozinha da creche, fazendo a comida das crianças; cuidei dos bebês no berçário. Aí você dava banho naquele monte de menino, enxugava aquele monte de menino, vestia roupa naquele monte de menino, penteava os cabelos", lembra Maria Canalli, que chegou ao educandário quando tinha 11 anos.
VISITAS AOS PAIS
Duas vezes ao ano, as crianças do educandário saíam andando de lá para ir até o Hospital Pedro Fontes visitar os pais. Ao chegar no local, elas viam seus genitores por meio de uma tela, muitas vezes até sem saber quem eles eram. Segundo a doutora em Geografia Elaine Pavani, esse era o único contato que, por anos, pais e filhos mantiveram.
"Existiam concessões que eram dadas pelo diretor da colônia, que, às vezes, permitiam que os pais as visitassem fora dessa época, mas eram ocasiões muito especiais, muito raras, não era algo que acontecia com frequência", conta.
"Aí você tinha estranhos, convivendo como pai, mãe e filhos em um mesmo espaço, mas que não tinham aqueles laços afetivos. Um não sabia o que o outro gostava, o que o outro fazia", destaca.
"Nós, como filhos daqui, nunca abandonamos o lugar. Nosso sonho é dar proteção à história do educandário e dar oportunidade a outras gerações de fazer o que não nos foi dado, oportunidade de ter formação profissional e educacional. O educandário tem esse espaço e é o nosso sonho buscar parcerias, seja com o governo, seja com a iniciativa privada, para transformar isso em realidade", afirma Heraldo Pereira, presidente da Associação dos Ex-Internos do Preventório Alzira Bley.
LUTA POR INDENIZAÇÃO
Há alguns anos, os filhos separados dos pais lutam por uma indenização pela violação de direitos que sofreram durante o período de isolamento compulsório. Atualmente, é concedida uma pensão vitalícia apenas às pessoas que foram diagnosticadas com hanseníase e internadas nas colônias.
No Espírito Santo, Heraldo é um dos líderes desse movimento. Ele faz parte do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas Pela Hanseníase (Morhan), que é autor de várias ações na Justiça em busca de uma pensão vitalícia.
"Nós queremos que o Estado reconheça o que foi feito com os filhos de hansenianos. Nós não tivemos a doença, mas sofremos todas as consequências, o preconceito, a alienação parental. Tivemos vários problemas de relacionamento ao longo da nossa vida. É nosso direito que essa situação seja reconhecida", destacou.
O texto altera a Lei 11.520/07, que trata da concessão de benefício previdenciário aos ex-pacientes submetidos a isolamento e internação compulsórios. Hoje, essa pensão não pode ser transferida a herdeiros ou dependentes.
A proposta autoriza o Poder Executivo a conceder pensão especial, mensal, vitalícia e intransferível, aos filhos que foram separados, até 31 de dezembro de 1986, dos genitores em razão do isolamento e da internação destes. O valor não poderá ser inferior ao salário mínimo nacional vigente, hoje de R$ 1.302. O benefício deverá ser pago a partir de requerimento do interessado e não tem efeitos retroativos.