Eduardo* gosta de desenhos, de jogar bola e andar de bicicleta. Como qualquer criança de 5 anos, o garoto vai à escola, à praia e ao parque. Uma vida comum, se não fosse por um detalhe: Eduardo tem HIV. O vírus, que pode levar à Aids, foi herdado da mãe biológica.
O menino é uma das 418 crianças do Espírito Santo - registradas de 1985 até dezembro de 2019 - entre os casos de transmissão vertical. São meninos e meninas de até 5 anos de idade, filhos de mãe soropositiva, que para não desenvolver a Aids, precisam desde o nascimento de medicação diária e acompanhamento médico. Com o tratamento, o mesmo que poderia ter evitado a transmissão do vírus para elas, as crianças podem ter uma vida completamente normal.
Eduardo foi salvo aos oito meses. A mãe, soropositiva, usuária de drogas e moradora de rua, não fazia o tratamento corretamente e não dava ao bebê os remédios que ele precisava tomar diariamente. O menino já tinha uma infecção grave no ouvido - provocada pelo HIV - quando o caminho dele cruzou o de Mônica*, de 39 anos, e João*, de 42 anos.
*Para preservar a família, os nomes usados nesta reportagem são fictícios.
"O ouvido dele esponjava pus de dentro para fora. Ela (a mãe) tinha os remédios, mas os frascos estavam todos cheios, parecia que ela não dava remédio para ele. E aí ela me perguntou: 'Você quer levar ele? Eu estou dando, não tem problema'", relembra Mônica sobre o dia que conheceu o menino.
418 crianças no ES
já foram contaminadas com HIV por transmissão vertical desde 1985
Era 11 de outubro, um domingo, véspera do Dia das Crianças, e Mônica tinha ido visitar a mãe. Encontrou o bebê nos braços da mãe biológica, nas proximidades da residência.
A ideia de ficar com o menino, que dias depois seria encaminhado por uma assistente social para um abrigo, não foi aceita de imediato. Mônica e João já tinham três filhas, a mais nova com apenas 4 anos.
"Orei muito ao Senhor para entender por que ele tinha colocado aquela criança na minha vida. Levei ele para minha casa. Ele não tinha nada, consegui berço, fralda, leite, roupa. Quando ela (mãe ) chegou para vê-lo, me disse: 'Ele vai ser seu filho, vai chamar você de mãe. Não vou bater na sua porta'" conta.
Mônica
Mãe adotiva do Eduardo
"Minha mãe disse que eu era doida de pegar o menino, porque todo mundo na rua dizia que ele tinha HIV. Eu tinha uma filha pequena, e ela achava que o Eduardo poderia passar o vírus para a minha filha. Eu disse que ela estava sendo preconceituosa, que essa não era a educação que ela tinha me dado, e então ela pediu desculpa"
Hoje, anos depois, Eduardo é o xodó da família, que busca regularizar a adoção dele. "Ele ganha até dos meus netos. Todo mundo trata ele como ele é: uma criança normal. Por parte da família não tem nenhum preconceito, mas penso muito em como vai ser a vida dele quando ele estiver maior. Ainda tem muito preconceito", diz.
ESCOLA PEDIU LAUDO MÉDICO
Se na família não falta amor, na escola o menino já precisou vencer o preconceito. Aluno de uma escola municipal na Grande Vitória, Eduardo levantou as suspeitas da professora quando passou a não se alimentar na hora do recreio.
“O remédio que ele tomava deixava um gosto amargo na boca o dia inteiro, e ele não sentia vontade de comer, só tomava leite. A escola me ligou e me pressionou para contar o que estava acontecendo. Eu não queria dizer, mas acabei revelando que ele tinha HIV e foi então que me pediram um laudo para que ele pudesse frequentar a escola”, conta a mãe.
Mônica
Mãe do Eduardo
"Expliquei tudo para eles, disse que o meu filho tinha carga viral indetectável, que não transmitia o vírus para ninguém. Mesmo assim me pediram um laudo que comprovasse que ele não oferecia risco para as outras pessoas"
Mônica conseguiu o laudo com o médico, mas nunca o apresentou para a escola. "Fiquei com medo, mas avisei que se descobrisse que eles estavam rejeitando o meu filho, buscaria meus direitos na Justiça", lembra.
ORIENTAÇÃO
Pais de crianças com HIV não são obrigados a informar à escola a condição de saúde do filho. De acordo com o infecto-pediatra do Centro de Referência de IST/Aids de Vila Velha, Rodrigo Barroso Araújo, a orientação é para que não se diga nada, como alternativa para tentar evitar o preconceito.
"A gente pede que evite ao máximo contar o diagnóstico para todo mundo, porque o preconceito é muito grande. E é uma informação que não interfere em nada. Uma criança com HIV não oferece risco para ninguém. O HIV não se pega conversando ou com contato. As pessoas acham que ficando perto podem pegar. As crianças sofrem muito preconceito, principalmente da família das outras crianças. Quando ficam sabendo que uma criança é soropositiva, tem sim muitas situações de discriminação. Na escola, muitas vezes, acham que a criança não pode brincar junto de outras crianças, estudar na mesma sala. É triste", defende o médico.
Rodrigo Barroso Araújo
Infecto-pediatra do Centro de Referência de IST/Aids de Vila Velha
"Muita gente questiona a possibilidade da criança se machucar, cair, se cortar, mas não tem que ter nenhum cuidado adicional porque se trata de uma criança soropositiva. Quando acontece da criança soropositiva se cortar, o que se deve fazer é evitar o contato com o sangue, como se deve fazer com qualquer outra pessoa. Não devemos ter contato com sangue de ninguém."
HIV DIFICULTA PROCESSO DE ADOÇÃO
Não é possível saber quantas crianças com HIV estão disponíveis para adoção no Espírito Santo. De acordo com o Tribunal de Justiça do Estado (TJES), o Sistema Nacional de Adoção (SNA) coloca as crianças soropositivas no grupo de crianças com doença infecto-contagiosa, onde se enquadram outras doenças, além do HIV.
Apesar de não saber ao certo quantas crianças capixabas estão nessa situação, o psicólogo e Coordenador da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Espírito Santo (CEJA), Helerson Silva, afirma que ter HIV faz diminuir as chances de uma criança ser adotada.
“Qualquer condição de saúde complica um pouco o processo de adoção, principalmente HIV. A maioria dos adotantes quer crianças mais novas e saudáveis, isso passa um pouco pela falta de conhecimento também. Muita gente tem aquela ideia da década de 1980, mas hoje não é mais assim. Crianças com HIV podem ter uma vida normal”, assegura.
Para o infecto-pediatra do Centro de Referência de IST/Aids de Vila Velha, Rodrigo Barroso Araújo, de 43 anos, tudo que essas crianças precisam é de cuidado e carinho.
Rodrigo Barroso Araújo
Médico
"Quando nós falamos da adoção de bebês com HIV, nós estamos falando de casais que verdadeiramente salvaram a vida dessas crianças. Porque se não fosse o cuidado e o carinho dessas pessoas, essas crianças não estariam vivas"
CENTROS DE REFERÊNCIA AUXILIAM NO PROCESSO DE ADOÇÃO
O Espírito Santo tem 26 Centros de Referência em IST/Aids. São nesses locais que o paciente recebe tratamento e casais interessados em adotar crianças com HIV são orientados sobre tudo que envolve a Aids.
“Toda família que tem intenção de adotar uma criança soropositiva passa aqui pela gente. Nós intermediamos a adoção. A família vem aqui, conversa com a gente sobre o tratamento e nós tiramos todas as dúvidas. Recentemente, depois de conversar com a gente, um casal ficou super animado com a ideia de adotar um bebê com HIV que nós acompanhamos aqui”, explica Maria Aparecida Lube, Coordenadora Municipal Programa de IST/Aids de Vila Velha, onde crianças soropositivas de todas as idades recebem tratamento.
Maria Aparecida Lube
Coordenadora Municipal Programa de IST/Aids de Vila Velha
"Na gravidez, mesmo se a gestação for perfeita, a mulher vai ter um neném que é uma caixinha de surpresas. Ao longo da vida, essa indivíduo também pode vir a ter problemas. O ser humano não é um cálculo matemático, tem todas as possibilidades. Mesmo com HIV, é uma criança que vai crescer normal"
Para Mônica, que sonhava em ser mãe de um menino, adotar o Eduardo foi uma das melhores escolhas que ela poderia ter feito.
“Ele é uma criança muito inteligente. Amo ele de paixão, faço tudo que estiver ao meu alcance por ele. Tudo na vida tem recurso, a gente não tem que ter preconceito”, conclui.
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