Café recém-coado, alho e cebola sendo refogados e carne de churrasco sendo preparada na brasa estão entre os aromas que muitos consideram agradáveis. Imagine sentir um desses cheiros tão comuns e ser tomado por completo nojo. Mais do que um incômodo, a parosmia, problema ligado à destruição de células do nervo olfatório, faz com que os odores sejam distorcidos: aromas que, antes, causavam interesse, passam a parecer absolutamente repulsivos.
Foi o que aconteceu com a designer Paholla Marquezini, 37 anos. Ela conta que foi infectada com a Covid-19 em meados de 2021, desenvolveu uma versão mais branda da doença, sem necessidade de internação, mas as sequelas perduram há mais de seis meses, afetando sua rotina e exigindo cuidados diários para tentar reverter a situação.
Durante a infecção, a designer perdeu o olfato por completo e também teve alterações no paladar. Quando os sentidos começaram a retornar, passou a sentir cheiros incomuns, o que a levou a procurar uma médica para identificar o problema do qual pouco sabia.
“A otorrino diagnosticou a parosmia. Não consigo comer carnes, alimentos temperados com alho e cebola, qualquer coisa que tenha um cheiro mais forte. Isso já faz seis meses e, desde então, já passei por vários outros médicos. Estou fazendo acompanhamento com nutricionista e endocrinologista porque, como não estou conseguindo comer algumas coisas, preciso ajustar a alimentação de acordo com o que consigo comer e também fazer suplementações.”
Paholla Marquezini
Designer
"Por conta da parosmia, acabei desenvolvendo uma depressão também. Não consigo ir à casa de outra pessoa e comer alguma coisa. Não consigo ir a restaurantes direito "
"No Natal e no ano-novo foi complicado, o pessoal estava fazendo um churrasco e eu tive que ficar em outro cômodo porque o cheiro de tudo me incomodava", conta Paholla.
Os caso costumam ser reversíveis, mas requerem cuidados específicos. Medicamentos corticoides podem ajudar logo no início da inflamação, mas quando os sintomas perduram, o mais recomendado costuma ser a terapia olfativa. Na prática, consiste em inspirar alguns aromas para tentar resgatar a memória olfativa correta.
Paholla, especificamente, realiza a inspiração de 10 produtos diferentes, todos os dias, em intervalos de uma em uma hora. “É muito comum usar alguns óleos essenciais, que tem um cheiro mais marcante. Além disso, também tenho feito acupuntura”, conta.
Embora também possa ser causada por outras infecções virais, a parosmia tornou-se bem mais comum após o surgimento da Covid-19, que, em suas primeiras versões, tinha sintomas como diminuição ou perda do olfato e, consequentemente, do paladar, quase como uma regra.
O analista de pricing, Bruno Henrique Jardim, 33, foi contaminado pelo vírus três vezes desde o início da pandemia. A primeira foi em junho de 2020, e o levou a desenvolver até uma pneumonia.
“Fiquei mal daquela vez. Perdi o olfato e paladar logo de cara, e demorou sete meses para voltar. Depois, quando fui infectado novamente, perdi de novo, mas voltou depois de uma semana. Eu sentia gosto de algumas coisas apenas, mas outras não. Podia ser a coisa mais amarga, que era imperceptível. Hoje em dia, felizmente, está tudo normal.”
PERDA TOTAL
A alteração no olfato e, consequentemente, no paladar, é chamada de hiposmia quando se trata apenas de uma diminuição desses sentidos. Já quando a perda é total, dá-se o nome de anosmia, quadro em que se enquadra a aposentada Sandra Maria dos Anjos Martins, 54, que foi infectada pelo vírus em janeiro deste ano. Na ocasião, o marido e a filha também foram contaminados.
Ela reforça que já tomou as três doses da vacina contra a Covid-19, e avalia que o imunizante fez toda a diferença para evitar quadros mais graves da doença. “E se tiver a quarta, quinta, ou quantas doses forem, vou tomar. Vacina é o que salva.”
Entretanto, mesmo tendo apresentado a forma branda da infecção, alguns sintomas, como perda de olfato e paladar, persistiram mesmo após um mês do contágio.
Sandra Maria dos Anjos Martins
Aposentada
"Sou hipertensa, fiquei muito preocupada, pois tenho medo do pós-covid. Fico sempre atenta a qualquer coisa fora do comum"
Quem também lida com sintomas persistentes é a funcionária pública Eliene Coelho Moreira Scaramella, 61. Ela se contaminou no final de 2020 e, até julho do ano passado, permaneceu totalmente sem olfato e paladar.
“O paladar voltou primeiro e o olfato, até hoje, não retornou por completo. Sinto cheiro de algumas coisas com mais intensidade, principalmente comida. Perfume, por exemplo, ainda não sinto. Fui ao otorrino e me indicaram realizar terapia olfativa, que é algo que eu já vinha fazendo em casa e dei continuidade”, relata.
O tratamento é o mesmo indicado para casos de parosmia, que também se desenvolve durante o processo de recuperação dos sentidos, quando as próprias células estão se regenerando de forma espontânea, conforme observa o otorrinolaringologista Sérgio Ramos.
Em alguns casos, o dano causado pelo coronavírus a essas células causa uma confusão no envio de sinais entre as terminações nervosas da região nasal e do cérebro, confundindo memórias olfativas básicas.
“Há uma distorção das memórias olfativas. Você sente um odor diferente do que deveria ser. Você chega perto de um alimento, por exemplo, e sente cheiro de lixo. O café, de repente, também não tem o mesmo cheiro.”
PACIENTE DEVE SER AVALIADO POR UM MÉDICO QUE INDICARÁ TRATAMENTO
O principal sintoma da parosmia é o distúrbio temporário do cheiro, que leva a uma dificuldade de reconhecer ou perceber aromas como realmente são, fazendo com que cheiros considerados agradáveis anteriormente passem a parecer estranhos ou insuportáveis. A condição, entretanto, deve ser diagnosticada por um médico, usualmente um otorrinolaringologista, ou um clínico geral, que vai avaliar o caso e confirmar a causa do problema para, então, prescrever o tratamento indicado para cada caso.
O otorrinolaringologista Bernardo Faria Ramos observa que não existe nenhuma medicação conhecida com uma margem muito grande de eficácia, embora os corticoides possam ajudar com a reversão ou a diminuição do processo inflamatório geral.
"O que tem ajudado também, no médio e longo prazo, é a terapia olfativa, que é uma fisioterapia do cheiro. Não é o termo mais adequado, mas consiste justamente em ir treinando, ir expondo o epitélio olfatório a vários tipos de aromas específicos para facilitar no processo de recuperação do nervo."
Geralmente, o treinamento olfatório é baseado em algumas essências principais, como cravo e canela, hortelã e menta, rosa e limão, podendo ser utilizado óleo essencial com esses aromas.
"Nesses odores, conseguimos, de maneira geral, abranger grande parte das partículas que temos contato no olfato para ajudar a voltar. É o tratamento que mais costuma trazer resultado, mas não é algo que aconteça no curto prazo."
Ele alerta, entretanto, que certas práticas devem ser evitadas. Em alguns casos, o problema deixa o paciente ansioso e o indivíduo começa a fazer várias coisas para conferir se está realmente sentindo cheiros, ou na esperança de resolver a disfunção no olfato. "Tem gente que cheira álcool, acetona, querosene, e às vezes acaba sentindo esses cheiros pois são mais proeminentes, mas, na verdade, pode até piorar a inflamação no epitélio olfatório."
OUTRAS CAUSAS ALÉM DA COVID
Bernardo Faria Ramos observa que existem outras causas para a alteração do olfato, isto é, não é só a Covid-19 que causa parosmia, anosmia, ou hiposmia, embora o vírus tenha tornado a aparição de pacientes com essas condições muito mais frequente nos consultórios.
“Todos esses problemas já existiam antes do vírus, geralmente ocorrendo após infecções virais. A Covid-19 tem um tropismo específico (tem capacidade de infectar especificamente determinadas células e não outras), e muitas vezes causa essas alterações no olfato e, por consequência, no paladar.”
Bernardo Faria Ramos
Otorrinolaringologista
"No processo de recuperação do olfato, muitas vezes o paciente começa a perceber essa distorção. A parosmia, especificamente, pode ser um indicativo de que o nervo está voltando a funcionar. E nem sempre isso ocorre de forma precoce, pode ser um pouco mais tardio, então não é incomum que surja algum tempo após a contaminação pelo coronavírus "
O neurologista Daniel Escobar, coordenador do Serviço de Neurologia Hospital Unimed Vitória, observa que isso acontece porque o dano às células, ocasionado pelo vírus, provoca toda uma reorganização da rede neural que pode causar essa alteração temporária no olfato.
“Na maioria das vezes, tanto a diminuição ou perda do olfato, quanto a parosmia podem ser reversíveis, mas pode acontecer de levar algum tempo até tudo se resolver. Alguns pacientes evoluem mais rapidamente, outros mais lentamente, e é recomendado fazer o acompanhamento com otorrino.”
PROBLEMA PODE DESENCADEAR TRANSTORNOS EMOCIONAIS
Escobar observa que a demora na recuperação desses sentidos também deve ser um ponto de atenção, pois, em alguns casos, os transtornos causados pela parosmia podem desencadear ainda transtornos emocionais por conta das alterações na rotina.
“Se, de repente, aquele alimento que dá prazer torna-se intragável, dá nojo, tira a fome, isso pode com certeza abalar a pessoa.”
A neurologista Mariana Lacerda Reis Grenfell destaca que são diversos os casos em que a contaminação pelo coronavírus afeta a saúde mental do indíviduo, e que embora a parosmia não seja decorrente de uma lesão do sistema nervoso central, pode desencadear problemas paralelos.
“Pode acabar desencadeando algum problema emocional, alguma doença psiquiátrica até, como ansiedade, depressão. São várias situações pós-covid que levam a isso, dependendo de como a doença afetou o indivíduo. Ter passado por uma situação muito peculiar, como é o caso da parosmia, ter perdido uma pessoa próxima, ou ter ficado com muito medo, por exemplo.”
TÉCNICA DE SOMMELIER DE CERVEJAS PODE AJUDAR
Em seu projeto de doutorado, cientista Amanda Reitenbach, doutora em neuroengenharia, estudou uma tecnologia que estimula a educação sensorial e treinos olfativos, voltada para alunos do curso de sommelier de cervejas.
A técnica consiste na identificação de alguns aromas, como lúpulo, madeiras, destilados, vinho, chá, café e flores. Os alunos ou pacientes recebem 10 frasquinhos concentrados com esses cheiros e precisam fazer inalações curtas, de 5 segundos, e longas, de 8 segundos, até 3 vezes no dia. Para estimular o olfato, é importante intercalar os aromas de cada dia, conforme relatou ao G1.
"Esse é o resultado de anos de pesquisa científica. Durante meus estudos, percebi que as pessoas tinham uma dificuldade muito grande em reconhecer alguns tipos de aroma. Então comecei a fazer treinamentos sensoriais com grandes famílias olfativas para criar memória de aromas e sabores."
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