Além de causar sintomas como febre, tosse e insuficiência respiratória, o novo coronavírus também lança luz à uma questão sensível no Brasil desde antes da pandemia: as desigualdades social, racial e até de gênero. No Espírito Santo, os dados apontam que quem mais sofre com a doença é a população negra que mora nas periferias, as mulheres e quem vive em algum aspecto de vulnerabilidade, como os moradores em situação de rua.
A desigualdade, quando caracterizada na forma do racismo, tem se tornado um tema cada vez mais sensível e motivo de protestos nos Estados Unidos, Europa e no Brasil. O último estopim foi a abordagem realizada pelo policial branco Derek Chauvin que resultou na morte do ex-vigilante negro George Floyd, de 46 anos, em Minneapolis (Estados Unidos).
Após deitar o suspeito no chão, o policial manteve o joelho sobre o pescoço do ex-vigilante por mais de oito minutos. Floyd reclamou que não conseguia respirar e acabou morrendo. A cena circulou pela internet, causou revolta e gerou protestos em todas as regiões americanas. O clima de insatisfação acendeu o alerta no Brasil. No último fim de semana, o país registrou manifestações no Rio de Janeiro e em São Paulo.
No Espírito Santo, os negros são as principais vítimas de violência e tem menos acessos a empregos. Um dos reflexos da ausência de políticas públicas voltadas aos pretos e pardos, segundo o Movimento Negro, é o fato dessa população ser a mais afetada pela pandemia.
Por causa do índice de contaminados e mortos pela Covid-19, o Movimento, com apoio de outros coletivos, vai entregar um documento com 105 reivindicações ao governo do Estado nesta quinta-feira (04). Dentre os pedidos, está a decretação de lockdown, que é o fechamento total do comércio e bloqueio de ruas.
Nesta quarta-feira (03), os dados da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) indicavam que 16.121 pessoas testaram positivo para a Covid-19, doença provocada pelo vírus. Desse total, 39,7% (6.401) das pessoas se autodeclararam negras (pretas ou pardas), 32,5% (5.240) brancas, 5,5% (898) amarelas e 0,12% (19) indígenas. De acordo com o Painel Covid-19, não há informação de 22,1% (3.563) dos infectados.
No mesmo período, o Estado registrou 698 mortes. Assim como acontece nos confirmados, quem mais morre no Espírito Santo pelo novo coronavírus são os negros, 41,4% (289). As pessoas brancas representam 27,2% (190) dos óbitos. De acordo com a Sesa, 21,7% (152) das vítimas não tiveram o recorte raça/cor registrado. Os amarelos representam 9,4% (66) e os indígenas 0,14% (1).
A segunda fase do inquérito sorológico, que investiga o comportamento da Covid-19 no Estado, apontou que mais de 70% dos negros foram infectados. A doença não escolhe raça ou cor, mas tem uma prevalência maior entre pretos e pardos no momento em que avança pelas periferias dos municípios capixabas.
Um levantamento realizado pelo jornal A Gazeta já havia apontado que a doença apresentou os primeiros registros nos bairros nobres da Grande Vitória e depois se alastrou pela região metropolitana e municípios do interior do Estado.
De acordo com o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), no primeiro trimestre de 2020, a população capixaba era de 4.043,000 habitantes. Desse total, 51,6% são pardos, 37,1% são brancos e 10,6% são pretos. O índice de 0,7% está distribuído entre as populações indígena e amarela (de origem oriental).
A partir da definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do entendimento do Movimento Negro, negro é a junção dos pretos e pardos, portanto representa 62,2% da população capixaba.
O doutor em Educação Gustavo Forde é militante do Movimento Negro e pesquisador das relações étnico-raciais e de estudos afro-brasileiros. Ele acredita que a pandemia torna as desigualdades mais explícitas.
Existe uma lógica racial que organiza a maneira como a população negra é vulnerabilizada às mazelas sociais. A Covid-19 escancara o efeito da desigualdade social e o racismo que sempre existiram. Basta observarmos o índice de óbitos da população negra e da população branca, a mortalidade na hora do parto de mulheres brancas ou o número de acidentes de trabalho entre brancos e negros. Essa desigualdade está colocada na sociedade há muito tempo, mas a pandemia escancarou isso, afirma Forde.
Na avaliação dele, os dados precisam ser analisados levando em consideração o fato de que o pertencimento racial das pessoas e o racismo são dois elementos que que participam do modo como a sociedade brasileira se organiza e da forma como as instituições também são organizadas. Para Forde, a partir de uma análise histórica e social, é possível interpretar os números sob outro aspecto.
Em um primeiro momento, poderia se crer que o índice de negros é maior porque os negros são a maioria das pessoas pobres. A população negra, do ponto de vista estrutural da nossa sociedade, não tem acesso aos bens e serviços públicos de qualidade necessária. De outro modo, as instituições brasileiras não estão presentes, de maneira qualificada, nos territórios de maioria negra.
As informações contidas no Painel Covid-19 atestam que a maioria das vítimas por coronavírus no Estado morava em bairros da periferia e que apresentava comorbidades como problemas cardiovasculares, diabetes, diabetes e obesidade. Para Forde, esse resultado é fruto da ausência de políticas públicas, sobretudo no campo da saúde, nas comunidades dessas regiões.
A Comissão Permanente de Direitos Humanos da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) acompanha os registros de contaminação e óbitos por coronavírus no Estado, mas também discute a realidade de cerca de 900 moradores em situação de rua na Grande Vitória. A presidente da comissão, professora Brunela Vicenzi, defende a criação de políticas que ofereçam mais assistência a esse público.
A pandemia mostra os extremos da desigualdade. Tem pessoas com renda, que podem trabalhar de casa, outras que precisam pegar ônibus para trabalhar e acabam se expondo ao risco. E as pessoas que já estão na rua não têm acesso a nada."
A Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH), por meio da Gerência de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (Gepir), avalia como preocupantes os dados que apontam a população negra como maioria dos infectados e dos pacientes que morrem com a Covid-19, por entender que esta população está em maior situação de vulnerabilidade. Diante desse cenário, a secretaria afirmou que tem adotado medidas de enfrentamento.
Através do programa ES Solidário, as famílias que vivem nas periferias, onde estão o maior quantitativo da população negra, têm recebido cestas básicas e também kits para higiene e limpeza, além de orientação sobre as medidas de prevenção, como a higienização correta das mãos e o uso correto de máscaras. O programa também atende a população quilombola em todo o Espírito Santo. Esse trabalho tem sido feito desde o início da atuação do ES Solidário e continua até os dias atuais.
Sobre as ações da SEDH durante a pandemia, além do ES Solidário - que por meio de doações de empresas e da sociedade civil tem conseguido atender famílias em situação de vulnerabilidade econômica e social de Norte a Sul do Espírito Santo - também há ações visando a proteção da população em situação de rua sendo executadas e em planejamento. A secretaria também tem realizado campanhas de orientação e conscientização sobre a doença
Especialistas em saúde apontam que a desigualdade social é um dos principais combustíveis de disseminação do novo coronavírus. Para evitar o contágio, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda o distanciamento social, o uso de máscaras e a adoção de medidas frequentes de higiene corporal, sobretudo a limpeza das mãos. No entanto, esse enfrentamento fica mais complicado no Espírito Santo.
economia/um-quarto-das-casas-no-es-esta-em-area-que-dificulta-controle-da-covid-19-0520" class="link" target="_blank">Isso porque uma em cada quatro famílias no Espírito Santo vive em área considerada precária e mais propícia à propagação do novo coronavírus. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 26,10% dos domicílios capixabas estão em aglomerados subnormais, o que indica locais adensados em áreas urbanas onde falta infraestrutura ou padrão nas construções.
O Espírito Santo é o segundo Estado do Brasil com o maior número de habitações em comunidades deste tipo em comparação proporcional ao número de moradias. Em primeiro lugar está o Amazonas, com 34% dos domicílios em aglomerados subnormais. No extremo oposto estão Mato Grosso do Sul, com 0,74%, e Santa Catarina, com 1,46%.
Segundo o IBGE, os fatores que caracterizam esses aglomerados são a falta de titularidade do terreno - como é o caso de áreas invadidas -, a ocupação desordenada, as construções improvisadas e a precariedade de serviços públicos essenciais (água, esgoto, coleta de lixo) e de infraestrutura (ausência de calçamento, iluminação, calçadas etc).
Quando o recorte é feito a partir do quesito raça/cor, os dados do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), com base em dados da Pnad Contínua/IBGE 2019, informam que 11,37% das pessoas autodeclaradas pretas, 10,02% das pessoas pardas e 6,11% dos brancos residentes no Estado vivem em moradias inadequadas.
O tópico engloba domicílios excessivamente adensados, quem têm ônus excessivo com aluguel (30% do orçamento mensal com habitação) e vive em moradias com paredes externas de materiais não duráveis, construídas com papelão e madeiras não aparelhadas. Os domicílios excessivamente adensados são configurados quando três ou mais pessoas dormem em um mesmo cômodo.
O tecido social do país é muito cruel. Isso é combustível para as doenças infecciosas. O Covid entrou pelas classes mais favoráveis e se amplificou pelas periferias. As mesmas pessoas que vivem em condições inadequadas, são aquelas pressionadas por romper isolamento social. Acontece que se elas não saem para produzir, elas não comem, atesta o doutor em doenças infecciosas, médico infectologista, Crispim Ceruti Junior.
E o perfil das vítimas da Covid-19 no Espírito Santo está sendo analisado por pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). A pós-doutora em Epidemiologia e professora da Ufes, Ethel Maciel, já observou que o número de óbitos de pacientes que deram entrada no serviço público de saúde é superior ao número dos que foram internados em hospitais particulares.
As pessoas, em geral de comunidades mais carentes, apresentam mais comorbidades. São pessoas que, pela situação social, já não vão regularmente aos postos de saúde, já não tomam os medicamentos e há muitas questões de desigualdade social, de nível educacional e de percepção de saúde. Tudo isso se revela nas mais variadas formas, avaliou Ethel.
A Comissão de Igualdade Racial da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim-ES), presidida pelo advogado Marcos Vinicius Sá, acompanha o impacto do novo coronavírus nas comunidades periféricas do Espírito Santo, sobretudo, naquelas onde residem a população negra. A comissão também vai solicitar à Sesa informações sobre o combate ao vírus.
Para algumas pessoas, o maior risco nesse tempo de distanciamento social é a exposição ao vírus fora de casa. Já para algumas mulheres, o perigo mora dentro de suas residências. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, afirmou que a pasta registrou um aumento de 35% nas denúncias de violência contra a mulher em abril, comparado ao mesmo mês do ano passado.
As denúncias são recebidas no Ligue 180 um dos canais de atendimento da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos e o incremento no número, segundo Damares, é reflexo indireto da crise do novo coronavírus, uma vez que com as medidas de isolamento social vítimas e agressores passam mais tempo em casa. No Espírito Santo, no entanto, as denúncias de agressão contra as mulheres tiveram redução de 18,7%.
Para autoridades e demais profissionais que trabalham o tema no Estado, a queda pode estar relacionada à subnotificação. O número de registros de ocorrência em março e abril de 2020 somam 3.987 casos, já no mesmo período de 2019 foram 4.905 casos. O número de feminicídios também caíram 50%. Entre março e abril de 2020 foram três casos, já no mesmo período do ano passado foram seis casos. Os dados da Secretaria de Segurança Pública.
As delegacias capixabas estão funcionando normalmente. Outra forma de denunciar é através do Disque Denúncia 181 e pelo Ciodes 190. A novidade é que as mulheres também podem fazer o registro pela internet através da Delegacia Online. As vítimas que precisam de atendimento psicológico também podem acionar um serviço Tribunal de Justiça (TJES).
Do dia 6 ao dia 22 de maio, 24 mulheres de Cariacica, Serra e Vila Velha entraram em contato com os telefones disponibilizados pela Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comvides) do TJES, em parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e ArcelorMittal Tubarão. O Comvides é coordenado pela juíza Hermínia Maria Azoury.
O atendimento é realizado por ligação ou mensagens instantâneas em cinco números diferentes, que estarão com psicólogas voluntárias. Qualquer mulher que for vítima de violência doméstica pode entrar em contato, independente se ela já tenha ou não denunciado. Caso a mulher não tenha créditos para ligar, a ligação pode ser feita a cobrar. Nesses casos, a psicóloga vai desligar a ligação e retornar para o número que fez o contato.
A psicóloga e psicanalista Cláudia Murta é a coordenadora dos atendimentos psicológicos realizados pelo telefone. Ela destacou que a pandemia originou novos conflitos domésticos. Um deles está relacionado à discussão sobre o novo protocolo de higiene. Desde a chegada do coronavírus, a limpeza das compras na volta do supermercado ou como lidar com os filhos durante os tempos de isolamento social podem ser estopins no ambiente familiar.
Em geral, a alternativa que sobra para algumas mulheres é não falar nada, ficar em silêncio. Elas dizem que quando não esse silenciamento, aí a confusão começa. Só que muitas falam porque querem seguir os protocolos de higiene, por exemplo. A maioria das mulheres que já atendemos nesses 15 dias é composta por mulheres negras, com filhos, empregadas e que sofreram algum tipo de violência psicológica, física ou moral, revelou.
Entendendo a violência como uma violação de direitos humanos, o coletivo Juntas e Seguras desenvolveu uma cartilha que explica o que é violência doméstica e ensina como as vítimas podem procurar ajuda. O projeto foi idealizado por Renata Bravo, que é professora universitária, mestra em Direitos e Garantia Fundamentais, e contou com a colaboração da advogada Karla Silva Coser e da designer Ananda Miranda.
A ideia surgiu analisando essa questão das pessoas estarem mais em casa, das mulheres estarem mais ocupadas, sobrecarregadas com as tarefas domésticas, e as pessoas passando por um momento de instabilidade emocional. Diante tudo isso, o lar, que já era considerado perigoso, poderia ficar mais perigoso ainda nesse período de isolamento social, explicou Karla.
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