O Espírito Santo ultrapassou, nesta quarta-feira (27), a marca de 500 mortes provocadas pela Covid-19. Apesar do número emblemático, não se trata apenas de estatística. Cada um que perdeu a batalha para o coronavírus é a dor de alguém. Vidas interrompidas de maneira abrupta, muitas vezes sem despedidas, deixam histórias por contar. Filhos, pais, maridos, esposas lembram aqui o que, em tempo algum, deve-se esquecer: a morte de uma pessoa é uma perda incalculável.
É assim que se sente a dona de casa Ryane Cosme Oliveira dos Santos, 33, que foi casada com o bancário Marcos Antônio Vieira dos Santos, 36, por quase 10 anos. Para ela, ainda é difícil falar do marido sem embargar a voz, sobretudo ao recordar o quanto eram companheiros um do outro. Nos planos do casal para 2020, havia a intenção de ter um filho. Não deu tempo.
Ryane Cosme Oliveira dos Santos
dona de casa
"A gente era muito parceiro, fazia tudo junto. Peguei muita estrada com ele quando ainda trabalhava em outros municípios. Parece que estou vivendo um pesadelo e fico esperando a hora de acordar"
O sonho ruim não acaba, nem mesmo quase dois meses após a morte do gerente da Caixa Econômica de São Mateus. Ryane conta que já fizeram churrasco em frente à agência, minimizando os riscos do contágio pelo coronavírus e o sofrimento daqueles que têm familiares infectados.
“Também falam que ele não morreu de Covid, mas por ter feito bariátrica. Meu marido nunca fez essa cirurgia. Ele estava emagrecendo por conta própria porque queríamos estar bem de saúde para ter um filho. Dizem que os números do coronavírus são inventados para causar pânico na população, que não existem tantas mortes. Isso é revoltante. O meu marido morreu por causa desse vírus, e isso não é mentira”, desabafa.
ANGÚSTIA E SOFRIMENTO
As mentiras entorno do educador de Linhares, Jocival Marchiori, 55, chegaram antes de sua morte e provocaram muita angústia e sofrimento. Com o pai ainda internado, o projetista mecânico Jordan Marchiori, 27, lembra que recebia mensagens falando que ele havia morrido. Também circularam informações que a contaminação havia ocorrido em São Paulo, numa visita ao filho.
“Foi tudo muito rápido. Ele passou mal na segunda e na terça já estava entubado. Nesse período, o pior foram essas fake news, a falta de respeito com a dor da família”, lamenta.
Para Jordan, filho único, em sua memória ficam a alegria e a generosidade do pai, que dedicou toda a vida à educação pública, buscando oportunidades para crianças e jovens que não teriam muitas chances sem a participação ativa de Jocival.
Jordan Marchiori
projetista mecânico
"Ele gostava muito de incentivar a prática de esportes, de música. Ele via oportunidades de alinhar a educação a outras formas para levar os alunos a outro patamar. Na escola pública, muitos vivem em condições adversas. E ele permitiu que tivessem a opção de não seguir por caminhos errados"
Apesar da intensa dedicação ao trabalho, o filho não esteve longe dos olhos de Jocival. Mesmo contrariado em algumas situações, admite Jordan, o pai sempre o apoiou. Na trajetória para chegar ao trabalho que hoje exerce em uma multinacional em São Paulo, e na qual começou como estagiário, o projetista estima que recebeu “uns 18 nãos”. “E ele esteve sempre lá para me apoiar, não me deixar desanimar”, valoriza.
EMPATIA
A falta de empatia com a dor do outro, como a vivenciada por Ryane e Jordan, talvez reforce a ideia de que muitos ainda enxergam as mortes como números. Não como pessoas que têm famílias, que criaram vínculos e construíram histórias por onde passaram.
A psicóloga Daniela Reis, especialista em luto, frisa que é importante ter cuidado com as palavras porque as famílias enlutadas precisam de acolhimento. Comparações que ela tem observado, como a de que o índice de morte é baixo no Espírito Santo, enquanto o impacto no comércio é elevado, também desconsideram o sofrimento alheio.
“Para quem perde alguém, o índice é 100%. É com essa dor que vão ter que reinventar a rotina. É necessário ter mais empatia. Não é colocar essas famílias no lugar de coitados, mas entender que vivemos uma tragédia sem precedentes”, atesta.
Projeções, segundo Daniela, indicam que há, no mínimo, 10 pessoas em luto por cada pessoa que morre. Ou seja, quando registramos mais de 500 mortes no Espírito Santo, estima-se pelo menos 5 mil enlutados. “Estou colocando números pequenos. Se é um líder religioso, por exemplo, com muitos seguidores, esse número pode ser ainda maior”, aponta a psicóloga, reforçando que essa é uma realidade que não pode ser negligenciada.
Assim como também não se pode ignorar que as exigências decorrentes da pandemia do novo coronavírus impedem a realização de ritos comuns à cultura brasileira, como os velórios.
Esse é um impacto que a universitária Sara Santos Ferreira, 22, e a família sofreram e não conseguem esquecer: não ter conseguido se despedir da mãe, a agente de saúde Rosimery Santos Ferreira, 47.
Sara Santos Ferreira
universitária
"A gente não pôde vê-la no hospital, dar o último abraço. A pessoa que a gente mais amava não teve velório, foi direto para o cemitério para enterrar. É muito difícil! Além de perder quem a gente ama muito, não ter como fazer a despedida que ela merecia doeu muito"
Sara descreve a mãe como uma mulher batalhadora, que aproveitava a quarentena para estudar e se atualizar. “Era uma pessoa maravilhosa, muito alegre. Todo mundo que convivia, sentia essa alegria dela. Estava saudável e, então, chegou essa doença devastadora que, em poucos dias, a tirou de nós. E tem gente que ainda não acredita. A Covid acaba com a pessoa muito rápido, e não é brincadeira”, constata a jovem.
FAMÍLIA DESTRUÍDA
Devastada também ficou Vania Modolo e a família com a morte do irmão, o soldador Ludimar Modolo, 30. O jovem sem problemas de saúde, que havia deixado o trabalho embarcado para ficar mais perto dos dois filhos, de 1 e 6 anos, morreu num intervalo de 13 dias.
"Essa doença é maldita, ela não escolhe quem vai contaminar, não escolhe um idoso ou alguém com síndrome, o coronavírus pega em qualquer um. Proteja a sua família. A minha família está destruída. Peço que se conscientizem, ouçam as recomendações dos governantes para ficarem em casa. A Covid-19 devasta as pessoas, e fica só um buraco dentro da gente", lamenta.
ROSTOS CONHECIDOS
E mesmo com a possibilidade de qualquer um ser vulnerável à doença, muitas vezes só é dimensionada quando chega bem perto com a perda de alguém muito querido. Esse cenário foi bem descrito pelo jornalista Geraldo Nascimento, após a morte do tio Salvador Ramos.
"Enquanto não chega perto de nós, a pandemia nos remete à cena de caminhar pela Avenida Paulista em dia de semana. Aquela multidão de desconhecidos. Milhares. Números apressados. E, de repente, muito particularmente, o coronavírus clareia um nessa multidão que vai embora. Não era o caso 8.878 do Espírito Santo. Era o tio Salvador. Assim como um tio Jorge, uma irmã Ângela, uma filha Bernadete, uma dona Claudia e um sem número de filhos, tios, sobrinhos, pais, avós que estão perdendo a briga pelo caminho", ressalta.
Sensação semelhante à do deputado Sergio Majeski, que perdeu a cunhada Zenidalva Aparecida Corona Majeski, a quem considerava como uma irmã. "Ela era uma pessoa maravilhosa. As pessoas têm que perceber a gravidade de tudo isso, dos riscos. A gente nunca acredita que vai acontecer com alguém que é próximo, que a gente ama. Mas isso mostra que pode ser com qualquer um", aponta.
Em muitos dos relatos sobre as vítimas, uma característica particular, mas também comum aos olhos de quem ama e sente saudades: a alegria. Essa era uma peculiaridade do servidor público Denis Saiter Majeski, 37, segundo contou a prima Juliana ao site Inumeráveis, que reúne depoimentos de familiares de vítimas da Covid.
“Ele sempre fazia graça para tirar um sorriso de quem estava ao seu lado. Aliás, sorriso era com ele mesmo. Era dono do maior sorriso que se tem notícia. De abraço ele também era especialista. E a alegria? A dele era contagiante”, relatou.
Para o mesmo portal, a representante comercial Jacqueline Lira de Miranda, 41, lembrou como o marido Anderson Oliveira Estevão, 54, era um grande parceiro de vida. "Estou sofrendo muito, pois ele era meu companheiro de todos os momentos. Trabalhávamos juntos todos os dias, seu sorriso era contagiante, ele levava a alegria por onde passava." Em A Gazeta, ela completou: "Ele era o melhor homem do mundo. Só me elogiava e me amava de verdade."
MILITARES
Dois policiais militares também estão entre as vítimas fatais da Covid-19 no Espírito Santo. O tenente Marcos Jorge de França, 50, era uma referência na família. "Ele era o meu herói em vida. O meu grandão descansou", lamentou o filho Gregory Ramos de França.
A morte do soldado Jean Zanon Venturim Ronconi, de apenas 29 anos, não foi menos sofrida. "Foi um choque muito grande e não consigo expressar a dor que estou sentindo", afirmou a cozinheira Julia de Souza Zanon Venturin Ronconi, mãe do militar, após a confirmação do óbito no último domingo (24).
No mesmo dia, o agente Ademar Ferreira dos Santos também encerrou a sua batalha contra o coronavírus. No Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo (Iases), a lembrança que ficou foi a de "um servidor muito querido por toda a comunidade, que se destacava por sua alegria, presteza e dedicação ao trabalho."
Morrem agentes de segurança, morrem também detentos. A despeito dos crimes que cometeram e pelo qual cumprem pena, alguns estão adoecendo e desenvolvendo o quadro mais grave da Covid-19. Esse foi o caso de Paulo Roberto da Silva, 59, que já havia passado por uma cirurgia cardíaca no início do ano.
A família havia solicitado a liberação dele, o que ocorreu quando apresentou sintomas respiratórios. "Meu pai estava praticamente desmaiando, já não conseguia andar", queixou-se Roberto Guasti Silva.
Após um procedimento cirúrgico, o desembargador aposentado Amim Abiguenem também começou a apresentar sintomas da Covid-19. Com 86 anos, acabou não resistindo à infecção. "Ele era uma pessoa muito apegada à família, muito agarrado ao neto. Bacana, alegre. A família está muito abalada", contou o genro Fábio Teixeira.
Para todas as pessoas que perdem um familiar, sobretudo no contexto da pandemia, é preciso respeitar o luto. "É uma adaptação. No momento inicial, é agudo, demora mesmo a passar. Não dá para exigir que voltem logo ao "normal". Muitos levam de dois a três anos para integrar uma perda, e o primeiro ano é particularmente muito difícil", finaliza a psicóloga Daniela Reis.
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