Quase três anos após o início da pandemia da Covid-19, a ciência ainda busca entender como a infecção afeta o organismo humano. Sintomas como falta de ar, tosse, cansaço e mudança na percepção do cheiro e sabor são algumas das situações que podem persistir meses depois da passagem do vírus pelo organismo.
Um dos impactos levantados por pesquisadores é na saúde mental de quem já foi infectado pelo SARS-CoV-2. Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Campinas (Unicamp) desvendaram como o coronavírus age no cérebro e identificaram a relação com quadros de depressão, ansiedade e lapsos de memória pós-Covid, situação também conhecida como "Covid blues".
O efeito a longo prazo ficou conhecido como pós-Covid ou Covid longa, que tem status de doença e foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde em outubro de 2021. Os sintomas podem ser a continuidade daqueles sentidos durante a infecção, mas também podem ser sinais novos, não experimentados antes.
A situação também chamou a atenção da Organização Mundial da Saúde (OMS), que, no início de 2022, registrou aumento de 25% de casos de ansiedade e depressão em todo o mundo. “A informação que temos sobre o impacto da Covid-19 na saúde mental mundial é apenas a ponta do iceberg”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da OMS, no início do ano.
+ 25%
foi o aumento dos casos de depressão no mundo segundo a OMS
Durante os primeiros meses da pandemia, o aparecimento de sintomas de depressão estava associado ao medo de perder parentes e do isolamento social, mas os estudos indicaram que o vírus em si provocou alterações no cérebro a ponto de desenvolvimento do quadro um mês ou até um ano após ser infectado pelo coronavírus.
Estudo em São Paulo apontou problema
A neurologista Clarissa Yassuda, que é professora doutora da Unicamp, explica que já nos primeiros meses da pandemia se motivou a estudar os impactos do vírus no cérebro porque já nos primeiros relatos viam alteração neurológica em pacientes graves, apesar de uma ser uma doença do sistema respiratório.
Sua parte no estudo era recrutar pessoas que moram próximo à Unicamp e fazer ressonância do cérebro, coleta de sangue e testagem cognitiva, iniciada em julho de 2020. A dúvida se o vírus afetava também o cérebro surgiu depois dos relatos de pacientes a respeito da perda do olfato e paladar.
Nos pacientes que tinham sintomas leves, avaliados de julho a agosto ainda em 2020, já se observava muitos sintomas de ansiedade e depressão e alta frequência de problemas de memória. “Naquela época ainda não se chamava síndrome da Covid longa e os pacientes não tinham apresentado esses sintomas anteriormente”, explica.
Naquela época eram 80 pessoas no estudo e atualmente são mais de 500. O estudo comandado por ela apontou que os sintomas neurológicos são a complicação mais prevalente da Covid-19 além do sistema respiratório, afetando mais de 30% dos pacientes.
O professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) Thiago Mattar Cunha explicou que o estudo – do qual é coautor – procurava entender se alguns dos sintomas relatados por pacientes, como a perda de olfato, seria indicação de que o vírus provocaria alguma alteração ou disfunção cerebral.
Sua parte no estudo foi fazer biópsia em tecidos cerebrais de pessoas que morreram de Covid. Os pesquisadores conseguiram identificar que o vírus também estava replicado no cérebro. “De alguma forma o vírus que está no trato respiratório consegue chegar ao sistema nervoso central e atinge a circulação, causando esses problemas”, aponta.
As análises foram feitas em amostras de tecidos do cérebro de 26 pacientes que morreram por complicações da doença.
Os pesquisadores ainda observaram que, em pacientes com Covid moderada, houve perda da massa encefálica em algumas regiões específicas do cérebro, e essa perda está correlacionada com diminuição de capacidade em testes de memória e de emoções, além de um aumento dos quadros de ansiedade.
Thiago Mattar Cunha
professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP
"O SARS-CoV-2 causa distúrbios no sistema nervoso central que estão associados a uma possível lesão e prejuízo funcional de algumas estruturas"
Prevenção e vacina
O estudo identificou casos mais graves no momento da pandemia em que ainda não existia vacina. Mas, mesmo assim, os pesquisadores apontam que a infecção e a reinfecção ainda provocam riscos de alterações nas células cerebrais. Por isso é importante estar com as vacinas atualizadas. Cunha ressaltou que quando menos grave for a doença, há menos possibilidade do vírus chegar ao sistema nervoso central, por isso a importância da vacina.
Depressão entre comorbidades pós-Covid
Estudo feito na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) também apontou a depressão e ansiedade como algumas das consequências em quem teve Covid-19 da forma mais grave.
Comandado pela pneumologista Jéssica Polese o estudo – iniciado ainda em 2020 – acompanhou 44 pacientes curados da Covid para avaliar a função pulmonar durante a recuperação, mas outros sintomas foram detectados nos exames realizados 30, 90 e 180 dias após a alta hospitalar.
A análise apontou mais comorbidades que podem surgir no organismo de quem teve a forma grave da doença, inclusive relacionadas à saúde mental. De acordo com o estudo, 28% dos pacientes apresentavam depressão, 36%, ansiedade e 44%, fadiga. Outros 44% do total relataram dormir mal.
Estudo da Ufes quer ajudar a amenizar impactos
Diante da chamada "brain fog", ou névoa mental, como também têm sido chamadas as sequelas no sistema neurológico, pesquisadores da Ufes pretendem realizar um estudo para investigar quais são as intervenções clínicas que podem ajudar a melhorar as condições desses pacientes.
“Essas sequelas identificadas vão desde dificuldade de cognição, memória e atenção, especialmente falta de clareza para conseguir resolver problemas simples que antes conseguia até transtornos de humor, como depressão e ansiedade”, detalha Mariane Lima de Souza, professora do Departamento de Psicologia Social e Desenvolvimento que está elaborando um estudo com objetivo de melhorar a condição dos pacientes que apresentam essas alterações na memória e atenção a ponto de retornarem ao funcionamento de como era antes da Covid.
Por enquanto a ideia é utilizar o protocolo de intervenção neurofeedback, uma técnica de modulação do funcionamento cerebral usando o computador com um software que permite fazer treinamento cerebral. Segundo a professora Mariane, essa técnica já é usada para treinar a memória de pacientes com Alzheimer. A ideia é adaptar o protocolo para ajudar a pessoas que se queixam de dificuldade de memória pós-Covid.
Ela explica que nas sessões de treinamento o paciente usa um equipamento de eletroencefalograma sem fio e um capacete que consegue monitorar como as ondas cerebrais estão atuando, especialmente as relacionadas à atenção. As sessões ajudam a ajustar as ondas cerebrais para auxiliar na atenção e memória.
A previsão é começar a estruturar o estudo em abril de 2023 e, depois de aprovado, deve durar de três a quatro anos.
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