Atualmente, 12.985 pessoas vivem com HIV no Espírito Santo. Esse número não inclui só adultos, mas também crianças em tratamento. O HIV faz parte da vida de muitas crianças já no primeiro dia de vida, uma vez que muita delas herdam o vírus da mãe. Nesta entrevista, o infecto-pediatra do Centro de Referência de IST/Aids de Vila Velha, Rodrigo Barroso Araújo, fala sobre prevenção, tratamento e os desafios que envolvem o HIV infantil.
Rodrigo Barroso Araújo
Médico
"O preconceito já vem atrelado com a doença, como se a criança tivesse que pagar uma conta que não é dela"
O especialista é taxativo: crianças com HIV podem e devem ter uma vida normal, o que falta é eliminar o preconceito! Confira a entrevista completa.
Quais as diferenças do HIV no adulto e na criança?
O HIV na criança difere muito do HIV no adulto. Quando um adulto se infecta, é um organismo pronto, com sistema de defesa pronto. E a criança não, está tudo sendo formado. Principalmente quando se fala de transmissão vertical (de mãe para filho), estamos falando de um bebê cujo sistema de defesa está em construção. O adulto pode demorar algum tempo para manifestar o sintoma, e a criança, o bebê, pode ser mais rápido. Sobre manifestação clínica, na criança observamos infecções bacterianas de repetição (como pneumonias, otites, sinusites) diferente do que ocorre no adulto, que tem infeções oportunistas. Além disso, as crianças pequenas podem ter atraso do seu desenvolvimento, como aprender a falar e andar. O meu primeiro paciente pediátrico vivendo com HIV, ainda na época da residência médica, era um bebê de 2 anos que não andava e nem falava. Iniciamos o tratamento e, em poucas semanas, ele estava andando e falando.
A forma de diagnosticar é a mesma?
A forma de diagnosticar também é diferente. Nas crianças com mais de 18 meses, o diagnóstico é feito igual ao adulto, com o exame de sangue do tipo Elisa. O Elisa pesquisa anticorpos contra o vírus. Nos bebês com menos de 18 meses, é feito de forma diferente, porque o bebê pode carregar os anticorpos da mãe e isso dificulta o diagnóstico. Por conta disso, nos bebês muito pequenos o diagnóstico é feito através do teste de carga viral, que permite ver a quantidade de vírus no sangue.
O tratamento funciona da mesma forma para crianças e adultos?
O tratamento se baseia no mesmo procedimento do adulto, só que com medicação de criança. Não pode ser comprimido e a criança depende de alguém que tenha responsabilidade para dar o medicamento. A criança depende de alguém que cuide dela, que dê o remédio direitinho, na quantidade correta de ml, todo o dia. Alguns remédios temos disponíveis tanto para adultos como para crianças. Para o adulto, temos mais medicações. Algumas medicações não são liberadas para crianças, algumas porque fazem mal e outras porque não têm em líquido, aí não dá para a criança tomar.
A doença se manifesta mais rápido na criança?
Tem uma parcela de crianças que evoluem muito rapidamente. Cerca de 20% das crianças de transmissão vertical, desenvolvem a doença nos primeiros 2 anos de vida. Uma outra parcela já manifesta na idade escolar, por volta dos 7 anos. Depende da agressividade do vírus e do sistema imunológico da criança.
Pais de crianças soropositivas devem comunicar à escola que a criança tem HIV?
O HIV é uma doença que traz muito preconceito e discriminação. No adulto, é muito comum e a gente sabe que isso vem da falta de informação. O HIV não se pega conversando ou com contato. As pessoas acham que ficando perto podem pegar. As crianças sofrem muito preconceito, principalmente da família das outras crianças. Quando ficam sabendo que uma criança é soropositiva, tem sim muitas situações de discriminação. Na escola, muitas vezes, acham que a criança não pode brincar junto de outras crianças, estudar na mesma sala. É triste. Já recebi pais que vieram me pedir um laudo atestando que o filho não oferecia risco para outras pessoas, porque a escola descobriu que a criança era soropositivo e queria um laudo para que a criança pudesse frequentar a escola. Por isso, a gente pede que evite ao máximo contar o diagnóstico para todo mundo, porque o preconceito é muito grande. E é uma informação que não interfere em nada. Uma criança com HIV não oferece risco para ninguém.
Muitas pessoas têm medo da criança se machucar, sair sangue e transmitir o vírus para outra criança. Existe esse risco?
Muita gente questiona a possibilidade da criança se machucar, cair, se cortar, mas não tem que ter nenhum cuidado adicional porque se trata de uma criança soropositiva. Quando acontece da criança soropositiva se cortar, o que se deve fazer é evitar o contato com o sangue, como se deve fazer com qualquer outra pessoa. Não devemos ter contato com sangue de ninguém. Machucou? Cobre com um pano limpo e procura o serviço de saúde para avaliar os cuidados de saúde habituais: avaliar a lesão, se precisa de pontos, se a vacina de tétano está em dia, e outros cuidados que a equipe de saúde julgar necessários.
É importante a gente reforçar que uma criança com HIV pode ter uma vida normal.
O preconceito já vem atrelado com a doença, como se a criança tivesse que pagar uma conta que não é dela. Hoje se convive e se vive muito bem com o HIV. Essas crianças têm uma vida normal, desde que façam o tratamento de forma adequada. O preconceito vem lá de trás e, para tirar esse estigma de paciente soropositivo, é difícil. Não se observa mais pacientes da forma como a gente viu Cazuza e Renato Russo, com aspecto de doente. Você não vê mais isso, a não ser que sejam pacientes que não se cuidam, que não fazem tratamento. Soropositivos são pessoas normais, que você encontra na rua, cumprimenta, conversa e muitas vezes nem sabe. A única diferença é que eles precisam de acompanhamento, de tratamento, tal qual quem tem diabetes.
O Espírito Santo registra poucos casos de transmissão vertical por ano. Em 2019, foram dois casos registrados, assim como em 2018. Mas por que é tão difícil atingir a meta do Ministério da Saúde de zerar os casos de transmissão vertical, uma vez que com tratamento existe 100% de chance da mãe não passar HIV para o bebê?
Existe um protocolo, existem, sim, condições de uma grávida não ter um bebê infectado. É muito frustrante quando a gente não consegue completar esse ciclo. Para todas as mães que fazem pré-natal, que seguem o tratamento, a gente não tem transmissão vertical. O maior problema hoje, o que nos impede de atingir a meta do Ministério da Saúde, são as mulheres que por algum motivo não fazem o pré-natal. Em geral, são mulheres com frequência em uso de drogas ou são moradoras de rua.
Hoje, qual é o perfil das crianças com HIV? A maior parte delas vive com a família ou em abrigos?
É bem misturado. Aqui no Centro de Referência de IST/Aids de Vila Velha, nós temos os três casos: crianças que os pais planejam a gestação, a mãe que deseja engravidar, se cuida, fica com carga viral indetectável, faz acompanhamento e o bebê nasce sem HIV; tem casos em que a mulher engravida de forma não planejada e não tem condições pessoais de cuidar da criança, e a gente conta com os apoios dos familiares, que acabam assumindo a responsabilidade de cuidar do bebê; mas temos grande parcela de pacientes que não têm ninguém, não têm suporte, apoio de ninguém e, para essas crianças, a gente indica o abrigo, porque a gente sabe que a criança será bem cuidada. E quando nós falamos da adoção de bebês com HIV, nós estamos falando de casais que verdadeiramente salvaram a vida dessas crianças. Porque se não fosse o cuidado e o carinho dessas pessoas, essas crianças não estariam vivas.
Qual é a mensagem que você acha que precisa ficar quando o assunto é HIV infantil?
Essas crianças não têm que carregar a culpa de nada, nem mesmo as mães. Muitas vezes, a mãe se contaminou de um parceiro que ela não sabia que tinha HIV. É muito triste ver o quanto de preconceito ainda existe com relação a isso, porque essas crianças já nascem tendo que carregar um fardo muito pesado.
Rodrigo Barroso Araújo
Médico
"Essas crianças merecem cuidado, atenção, carinho. Com tratamento, elas podem, e devem, ter uma vida normal, igual a de qualquer outra criança"
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