Com lágrimas nos olhos e mal contendo a emoção, a equipe no Hospital Infantil de Vitória, localizado em Bento Ferreira, se despediu de Anna Isabeli Reinholz Lima. A garotinha que foi internada ainda bebê e que passou seis anos morando na unidade hospitalar recebeu alta nesta sexta-feira (23).
Pela manhã, até funcionários que estavam de folga foram ao hospital se despedir da pequena. Quem não pode ir, fez chamada de vídeo para mandar uma mensagem para a garotinha que se tornou “filha da equipe”. À tarde, em meio a troca de carinhos, cartazes de despedida, agradecimentos e presentes, a pequena foi colocada em uma ambulância e seguiu para casa, em Cariacica, com os pais e o irmão.
Após longos anos, a família de Anna não escondia a alegria de poder voltar a ficar junta, em casa. “Me emocionei quando meu filho, de 13 anos, observou que agora poderemos, eu e meu marido, ficarmos juntos com nossos dois filhos, em casa. O que até então não era possível porque a Anna morava em um hospital”, contou a mãe, Shirley Reinholz dos Passos Lima.
Uma ambulância com suporte avançado, com equipamentos especiais, levou a garotinha para sua casa, em Cariacica. Lá parentes amigos e um quartinho colorido aguardavam por ela, sinalizando o início de uma nova etapa em sua vida.
DOENÇA INCURÁVEL
Portadora de Atrofia Muscular Espinhal (AME), Tipo 1, a mais grave, a pequena foi internada ainda bebê, há seis anos e 8 meses no Hospital Infantil de Vitória, de onde nunca saiu. Seu dia a dia, enquanto crescia, passou a ser limitado pelas paredes e teto do quarto, pela frequente luz branca e sons dos equipamentos como respirador e monitores, além do cheiro e corre-corre típico das unidades hospitalares.
De acordo com a pediatra Isabel Carvalho, diretora-técnica do Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória (mais conhecido como Hospital Infantil de Vitória), a AME é uma doença incurável. Trata-se de uma mutação genética, neurodegenerativa e progressiva, que causa a morte dos neurônios que cuidam do movimento muscular, fazendo com que o paciente perca a atividade motora de forma parcial.
Dos quatro tipos de manifestações da doença, a Anna tem o Tipo 1, a modalidade mais severa e grave. “Ela não se movimenta, não senta, tem limitações de ordem motora, depende de uma máquina para respirar. Todo o tempo que permaneceu no hospital, ficou em ventilação mecânica”, explica a médica.
É uma doença difícil de ser diagnosticada, mas quanto mais cedo for identificada, melhor a qualidade de vida do paciente, com chances menores de complicações, pontua a pediatra. Em geral, dentre outros sintomas, a criança, nas fases em que já consegue sustentar a cabeça ou sentar, por exemplo, não consegue fazê-lo.
São alguns sinais que devem alertar a família. “Os pais de Anna perceberam cedo. Eles nos relatam que na consulta com o neurologista o médico fez uma manobra que mostrava a fraqueza muscular do corpo de Anna, e praticamente deu o diagnóstico na hora, o que acabou sendo confirmado posteriormente pelos exames”, relata.
São crianças que dependem de uma equipe multiprofissional para garantir o seu atendimento. É a chamada assistência multidisciplinar, da qual fazem parte profissionais como fisioterapeuta, fonoaudiólogo, enfermagem, psicólogo, assistente social, nutrólogo, nutricionista, pneumologista, neurologista, pediatra, cirurgião de tórax.
E em um momento como este, de alta de uma paciente que é moradora do hospital, a emoção toma conta das unidades. “Para as equipes estas crianças são como filhos. A Anna chega a escolher o fisioterapeuta que ela quer. E na hora da saída, a emoção é grande. Só de tocar no assunto, alguns membros da equipe já começam a chorar”, relata a médica.
MELHORA NO QUADRO E UNIÃO FAMILIAR
Edimar de Jesus Lima, pai de Anna, destaca que a ida da filha para casa é uma grande conquista. “Ela é a primeira paciente com AME Tipo 1 a sair da internação hospitalar e ir para casa, no Espírito Santo”, conta, orgulhoso.
Alguns fatores contribuíram para a desinternação da menina, como observa a pediatra Isabel Carvalho. Um deles é o fato da família ter conquistado, na Justiça, o direito da criança tomar uma nova medicação para a doença e que é de alto custo. Trata-se do nusinersena (Spinraza). Aplicado a cada quatro meses, ele ajuda a aliviar os sintomas da doença.
Anna começou a tomar o medicamento em 2019 e, relata sua mãe, já começou a apresentar melhoras. “Ela recuperou as expressões faciais, o movimento de um ombro. Já consegue até dançar com ele”, conta Shirley.
A tendência, segundo a pediatra, é que em casa ocorra um progresso ainda maior no desenvolvimento de Anna. “Pode progredir até para uma tentativa de fala”, explica. Houve ainda, segundo a médica, melhora no quadro respiratório.
O medicamento, aliado ao tratamento feito pela equipe médica e de fisioterapia, permitiu que a paciente testasse um outro modelo de ventilação mecânica, o chamado Bipap, que dá a ela mais mobilidade.
E foi a adaptação a este equipamento que permitiu a realização do sonho da família de levar a garotinha para casa. “O aparelho bota ar para dentro do pulmão dela e é de manipulação fácil. Ela entrou no programa e conseguiu o equipamento”, explicou.
Outro fator importante vem da união da família da Anna, pondera a pediatra. “É uma família que tem a maturidade e que está preparada socialmente para lidar com os desafios de cuidar de uma criança que requer muita atenção. É uma situação complexa e nem todas as famílias se sentem seguras. É preciso ter uma estrutura familiar muito forte e ter coragem”, observa a pediatra.
Um protocolo de desinternação foi preparado para a Anna, explicou a médica, permitindo que ela possa retornar ao hospital para as consultas periódicas, inclusive para tomar a medicação. Em todas estas ocasiões ela precisa ser transportada em uma ambulância com suporte avançado, e sempre ser atendida no Hospital Infantil de Vitória. “Ela precisa retornar porque há um planejamento para a medicação, precisa ser acompanhada por um neurologista, um pneumologista, o cirurgião torácico”, explicou a diretora.
DOAÇÕES PARA REFORMAR A CASA
Semanas antes de deixar o hospital, o quartinho de Anna já estava pronto para recebê-la. E com muitas cores: paredes rosa, caminha amarela, roupa de cama de bichinhos, tudo como a pequena gosta. Foi necessário fazer uma pequena reforma na casa, trocando piso e preparando o ambiente. Tudo conquistado com as doações que a família recebeu.
Também foi por intermédio de doações que conseguiram os equipamentos que a menina vai precisar em seu dia a dia. Shirley conta que as adaptações na casa começaram a ser feitas em setembro. “Trocamos o piso, instalei um ar-condicionado. Com as doações, reformamos outras partes da casa para evitar obras no futuro”, relata.
Shirley relata que, via Defensoria Pública do Estado, recorreu à Justiça para obter todos os equipamentos que a filha precisa, mas como ainda não há decisão judicial, foi atrás de doações. Foi assim que conseguiu o ar-condicionado, um berço hospitalar. Também recebeu doações dos médicos, como o oxímetro de dedo e ambu (suporte manual a vida).
Pelo Centro de Referências em Espacialidades (CRE) Metropolitano, ela consegui o oxigênio. Mas falta ainda os monitores que vão ser, temporariamente, emprestados pelo hospital, que vai ceder ainda insumos básicos para ajudar a família pelo menos no primeiro mês.
Shirley conta que já entrou com outro processo judicial para tentar um auxílio do município de Cariacica, onde a família reside. “Precisamos de equipamento para dieta, frascos, fralda descartável, gases, sonda, luvas e outras materiais para a lida com ela no dia a dia. Conseguimos muitas doações que vão nos ajudar nos próximos dois meses, mas ela precisa de cuidados diários”, relatou.
Ela também tenta obter uma bateria portátil para os equipamentos que garantem a vida de sua filha. Também já se cadastrou em um programa da companhia de energia para garantir que não haja interrupção do fornecimento para a sua casa, já que a Anna precisa dos equipamentos de manutenção de vida.
CONHECENDO UM NOVO MUNDO
O fisioterapeuta Leonardo Heredia Luchi, um dos 12 profissionais da área que cuidam da Anna, relata que a preparação para a desinternação incluiu idas ao pátio do hospital, em saídas programadas do quarto.
Ele conta que realizaram três saídas programadas, com todo cuidado, para que ela pudesse interagir com um mundo diferente do quarto hospitalar em que vive. “A reação dela foi sensacional. Ela e a mãe ficaram maravilhadas. Ela estava com um semblante de como se fosse a primeira vez que vê o mar, ou quando se ganha a Copa do Mundo. Olhava os pássaros, as árvores, folhas, gente passando, um monte de cores. Tudo era novidade. Emocionante”, conta Leonardo.
A desinternação destas crianças, que vivem no hospital, é um momento emocionante para as famílias e para a equipe. “É um reconhecimento do trabalho conquistado. Você vê a alegria da criança, um sinal de que estamos no caminho certo. E também impacta em outras famílias, pais que não acreditam que é possível, e quando veem acontecendo, começam a aceitar e entender que também podem viver a mesma experiência”, pondera Leonardo.
No período em que permaneceu no hospital, parte do trabalho da equipe era evitar a progressão da doença, além de proporcionar a volta de alguns movimentos, o que permite ao paciente uma maior interação com a terapia, com a família, com as equipes. “Apesar da perda muscular, o cognitivo da Anna é normal. Ela é lúcida e interage”, relata.
Parte deste trabalho foi conseguir mudar a pequena para uma nova modalidade de ventilação. “Ela se adaptou super bem ao bipap, em um mês e meio, e não precisou voltar para a ventilação mecânica. Esperávamos que fosse demorar mais tempo pela fraqueza muscular, mas foi uma surpresa agradável a adaptação dela”, relata. A família também foi treinada para manusear de forma correta todos os equipamentos e na lida diária com a Anna.
VIDA NO HOSPITAL
Os primeiro anos da vida de Anna foram passados na unidade do Hospital Infantil localizada na Praia do Canto, chamada de Colina. No início deste ano, em decorrência da pandemia do novo coronavírus, a família foi trazida para a unidade Milena Gottardi, localizada em Bento Ferreira.
Ao longo destes anos, a família enfrentou muita dificuldade, se mantendo unida, mesmo dividida entre a casa e o hospital nos cuidados com Anna. Além da garotinha, Shirley e Edimar de Jesus Lima possuem um outro filho, hoje com 13 anos, o Saulo. Metade da vida do adolescente foi passada ou com o pai, ou com a mãe, já que eles se revezavam com a Anna no hospital. “Meu filho é apaixonado pela irmã e está supercontente com a ida dela para casa. Sei que ele sempre sentiu falta da minha presença”, conta Shirley.
A doença de Anna não afetou a sua cognição. Uma garotinha de 7 anos que começou a ser alfabetizada pela mãe ainda no hospital. Shirley utilizava as paredes do quarto para ensinar as palavras para a filha. Trabalho que acabou sendo interrompido pela pandemia do novo coronavírus. “Ela não tem nenhum atraso no desenvolvimento mental. É uma mente aprisionada no corpo. Comecei a alfabetizá-la a partir da sugestão de uma professora no hospital. Ela estava matriculada na rede, mas o trabalho foi interrompido pela pandemia”, conta.
A longa internação de Anna permitiu que a sua mãe fizesse um curso de técnico de enfermagem. “Fiz o curso presencial, com estágio, e já me formei. Foi uma longa batalha, mas vai me ajudar a cuidar da minha filha”, conta.
O pai, Edimar, já atuou como socorrista. Hoje está em outra área, atuando como gerente de logística. Mas avalia que a sua experiência também vai ajudar nos cuidados com a filha. “Temos todos os conhecimentos. No hospital já somos nós que fazemos a aspiração, algumas trocas de equipamentos, damos a medicação”, relata.
Anna vai para casa após sete anos internada
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