"Quando a pessoa vem, o clima e o idioma não são um obstáculo porque o mais importante é comer e viver com tranquilidade. Na Venezuela, eu me preocupava todos os dias com o que eu ia comer no dia seguinte. Como vou render o arroz? A farinha? É muito difícil. Só vivendo para entender." O desabafo é da Annielly del Valle Natera Tovar – uma refugiada venezuelana que tenta recomeçar a vida no Espírito Santo.
Junto do marido José Rafael Jayme Villasana e da filhinha Ashley, ela desembarcou no Aeroporto de Vitória no dia 22 de junho de 2022, depois de passar um ano em Roraima — Estado que é a porta de entrada no Brasil para muitos refugiados. Aos 38 anos, ela deixou os demais familiares e quase tudo que conquistou para trás.
"O cenário da Venezuela está em decadência tem quase 20 anos. Há cerca de seis anos, tudo foi ficando mais complicado: não havia mais medicamentos e supermercados não tinham mais alimentos. Quando tinham, eram muito caros. A crise na Venezuela fez com que todos migrassem", conta.
Annielly del Valle Natera Tovar
Refugiada venezuelana
"Só trouxemos nossas malas e vontade de trabalhar"
Os três cruzaram a fronteira do Brasil em 27 de junho de 2021, depois de caminharem da cidade venezuelana de Santa Elena de Uairén até Pacaraima, em Roraima. "Levou cerca de uma hora, mas tem gente que mora em locais mais distantes e passam dias andando porque o governo da Venezuela às vezes proíbe o transporte", revela.
Annielly e José Rafael se conheceram em 2019, justamente em Santa Elena, quando os dois já enfrentavam situações complicadas — ela perdeu o emprego de garçonete em um hotel no qual trabalhava havia 12 anos; e ele acabou demitido de uma empresa siderúrgica que faliu devido à crise econômica.
A VINDA PARA O BRASIL
Segundo o casal, a escolha pelo Brasil se deu à maior facilidade para obter documentações pessoais, como o CPF e a Carteira de Trabalho, que são direitos de refugiados reconhecidos no país. Ao chegarem, se surpreenderam positivamente com os brasileiros. "É um povo muito acolhedor. Deus colocou muita gente boa no nosso caminho", destaca Anni.
No entanto, na mesma situação deles, há milhares de outras famílias. "Em Roraima há muitos abrigos. Cada abrigo tem um nome e cada um tem centenas de famílias. São acampamentos. Todos têm banheiro, mas em alguns era preciso sair para conseguir comida, em uma igreja, por exemplo", conta. Devido às inúmeras camas enfileiradas, esses locais às vezes são chamados — tristemente — de "cemitério".
Annielly del Valle Natera Tovar
Refugiada venezuelana
"Vi muitas coisas muito difíceis. Há muitas crianças dormindo na rua e mulheres que precisam de oportunidade. Eu só consegui porque tenho marido"
Meses depois, em março, eles passaram a fazer parte da Operação Acolhida — um programa do Governo Federal, em parceria com o Exército Brasileiro, que visa a interiorizar refugiados venezuelanos por meio de dois modos principais: famílias que já estejam no país ou de empregos ofertados.
A MÃO-AMIGA CAPIXABA
Pouco depois, eles foram selecionados para uma entrevista por se encaixarem no perfil desejado por um empresário capixaba. Nascido na zona rural de Vila Valério, região Noroeste do Espírito Santo, Luís Calos Tose tem um sítio na região de Alto Tabocas, no município de Santa Teresa, Região Serrana, e precisava de um caseiro.
"Desde 2006 eu sempre tive caseiros daqui do Estado, que trabalharam, mas buscaram mais crescimento profissional e se desligaram. Uma vez o meu irmão me perguntou por que eu não trazia um venezuelano, mas isso ficou no esquecimento. Depois de uns dois anos, decidi fazer um teste", conta.
O processo se deu por meio da plataforma Empresas com Refugiados, iniciativa do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), e durou cerca de 45 dias. "Fiz o cadastro, respondi questionários e fiz três entrevistas on-line, que, para mim, foram suficientes para decidir por essa família", diz.
A opção por um casal foi intencional: facilitar a adaptação. "Por ser uma área rural, com pouco contato com vizinhos, a pessoa poderia se sentir isolada. O companheirismo faz diferença", opina o empresário. "A experiência do José Rafael em roça foi decisiva, além do grande interesse em começar uma nova vida", completa.
Luís Carlos Tose
Empresário
"Eu me sinto muito agradecido por ter ajudado porque eles estavam precisando. Estavam em uma situação crítica, vivendo em acampamento, em uma situação de submundo"
Para ajudar no recomeço, Luís Carlos tirou uma semana para ficar com a família e garante que o idioma não foi um problema. "Tem palavras diferentes, por exemplo: a gente chama 'cachorro' e eles chamam 'pero'. Tratar das galinhas é cuidar dos 'pollos'. Mas a gente conseguiu se entender. Não foi difícil", afirma.
Segundo o empresário, o maior obstáculo — acredite se quiser — foi o frio capixaba. "Eles estavam acostumados a 42ºC que fazia em Roraima e chegaram aqui com a temperatura na casa dos 12ºC. Teve um período de adaptação em que eles ficaram bem encapotados (risos), mas hoje já está normal", brinca.
SENTIMENTO DE GRATIDÃO
À beira da piscina que cuida diariamente, José Rafael Jayme Villasana se diz extremamente grato a Deus e ao patrão capixaba, destacando que a família teve sorte de conseguir o emprego em alguns meses. "Tem muita gente esperando por mais tempo lá (em Roraima), às vezes com cinco, seis crianças", conta.
"Graças a Deus, na Venezuela, aprendi muitas coisas, muitos trabalhos. Graças a Deus e às pessoas brasileiras que nos deram uma mão amiga, que outros países não deram, estou aqui, comendo todos os dias. Foi uma experiência extremamente forte porque nunca pensei em vivê-la", desabafa.
José Rafael Jayme Villasana
Caseiro refugiado
"Não tem uma vez que a gente coma uma boa comida sem pensar se nossos filhos e nossa família na Venezuela estão comendo um pão, que já é muito difícil de conseguir"
No Brasil, ele tem dois objetivos. "Saí do meu país com a meta de trabalhar para recuperar tudo o que perdi e para garantir uma boa educação para essa menina (a enteada Ashley). A primeira coisa que fizemos foi a matrícula escolar dela aqui em Tabocas. Sei que pouco a pouco Deus vai abrindo portas", afirma.
Encantado com o local montanhoso, cheio de verde e que, por vezes, amanhece com neblina, José Rafael tem o sonho de se tornar um microempreendedor. Já a esposa pretende abrir um negócio na área da gastronomia, ligado às próprias raízes. "Quero vender o prato tradicional de onde nasci: as arepas", diz.
A iguaria é bastante comum em vários países da América Latina, incluindo Venezuela e Colômbia. Trata-se de uma espécie de pão achatado e de formato arredondado. Feitas com farinha de milho ou milho moído, as arepas podem ser recheadas com diversos ingredientes, formando um tipo de sanduíche.
MILHARES À ESPERA
Apesar dos sonhos para o futuro, a Anni ainda não consegue esquecer do que viveu nesse passado recente e lembra muito bem das árvores de Boa Vista, em Roraima, mas não pela beleza delas. "Cada árvore era de uma família que vivia na rua, era como a casa, o teto. Principalmente na região da rodoviária", recorda.
Na capital de Roraima, milhares de refugiados ainda aguardam uma chance. "Há muitos indígenas com dificuldade e mulheres solteiras com filhos pequenos, que, como mãe, eu sei que seriam ótimas se tivessem uma oportunidade para trabalhar porque nós fazemos de tudo por eles", garante.
Annielly del Valle Natera Tovar
Refugiada venezuelana
"Há também muitas pessoas da terceira idade, que têm profissão: são motoristas, mecânicos, soldadores... que merecem uma oportunidade. Não só as pessoas jovens têm direito a uma nova vida"
Agora interiorizada, ela quer guardar dinheiro para trazer os familiares que ficaram na Venezuela: a mãe, que tem 62 anos; o outro filho de 21 anos; o filho de José Rafael, de 18 anos; e a irmã dela, que é solteira e tem quatro filhos. "É muito difícil ver sua família passando necessidade e não conseguir fazer nada", desabafa.
"A educação na Venezuela está muito ruim porque os professores emigraram. Comprar um calçado ou roupa por lá é luxo. O mais importante é comer todos os dias, e muita gente não come. Eu sei o quanto a gente sofreu para estar aqui hoje e não quero que eles passem por isso. Quero trazer um por um", diz.
EMPRESAS COM REFUGIADOS: COMO FUNCIONA
Oficial de Meios de Vida do Acnur no Brasil, Paulo Sergio de Almeida explica que a plataforma Empresas com Refugiados foi lançada em 2019, a partir da percepção de que o setor privado não possuía clareza sobre a possibilidade de contratação de pessoas refugiadas nem como fazê-la no país.
"No site tem uma sessão de documentos, guias e informações úteis para as empresas atuarem com essa população. Também reunimos iniciativas bem sucedidas, em uma espécie de vitrine do projeto, para que mais empresas possam se inspirar e fazer a contratação de refugiados", diz.
Segundo ele, a plataforma presta apoio a empregadores que buscam por refugiados para trabalhar por meio de dois principais caminhos: um com organizações espalhadas pelo país e outro com a Operação Acolhida, em Roraima, especificamente para contratação de venezuelanos.
66 refugiados da Venezuela
já foram interiorizados até agosto de 2022, por meio de vagas de emprego no ES
"Neste caso, referenciamos a demanda às autoridades, que dão continuidade ao processo. Resumidamente, a Operação Acolhida vai buscar o perfil desejado, indicar pessoas para entrevista por videoconferência, e a empresa vai escolher o candidato. Depois, é feita a preparação para o deslocamento", esclarece.
Paulo Sergio ainda destaca várias vantagens sobre esse tipo de contratação. "Pessoas refugiadas, em geral, têm bom nível educacional e experiência profissional. Muitas vezes são pessoas que falam mais de um idioma e com conhecimentos que agregam em inovação, além de somar em diversidade."
Paulo Sergio de Almeida
Oficial de Meios de Vida do Acnur no Brasil
"Os refugiados também têm uma taxa de rotatividade menor, são mais fiéis às empresas. Além de virem com muita disposição e acabarem motivando os colegas de trabalho"
Ultimamente, a iniciativa tem percebido uma adesão de empregadores que buscam mão de obra fora das grandes cidades — a exemplo de Santa Teresa. "Todos os perfis são buscados, mas há essa questão geográfica, porque fora dos principais centros urbanos há uma dificuldade maior de contratação", analisa.
No entanto, infelizmente, entraves clássicos do mercado de trabalho brasileiro também impactam a população refugiada. "Os homens acabam sendo mais procurados e ainda é mais díficil para as mulheres. Há necessidade de políticas específicas que possam ajudar nessa interação econômica", defende.
OPERAÇÃO ACOLHIDA: MAIS DE 70 MIL INTERIORIZADOS
Criada no início de 2018, a Operação Acolhida tem como objetivo "oferecer assistência emergencial aos refugiados e migrantes venezuelanos que entram no Brasil pela fronteira com Roraima, organizando a chegada deles, buscando inserção social e econômica e apoiando na procura por emprego e moradia".
A chamada "Vaga de Emprego Sinalizada (VES)" — caso da família de Anni e José Rafael — é uma das formas de interiorização. Desde abril de 2018 até agosto deste ano, quase 83 mil venezuelanos foram interiorizados no país, em mais de 800 municípios. Os que mais receberam foram Curitiba (PR), Manaus (AM) e São Paulo (SP).
A Operação Acolhida é composta por 11 ministérios e conta com o suporte da Organização das Nações Unidas (ONU) e de mais de 100 entidades da sociedade civil. Um subcomitê, coordenado pelo Ministério da Cidadania, atua na gestão dos abrigos e é responsável pelos processos de transferência voluntária dos imigrantes.
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