Negros do ES narram como o racismo afeta o cotidiano
Negros do ES narram como o racismo afeta o cotidiano. Crédito: Montagem/A Gazeta

Dia da Consciência Negra: racismo tenta dizer que não, mas vidas pretas têm valor

Pretos contam como já foram vítimas de preconceito e como agem para combater a discriminação. Segundo eles,  têm surgido no Brasil outras formas de racismo, o que exige um aumento da resistência contra essa violência

Tempo de leitura: 6min
Publicado em 20/11/2021 às 08h05

Antes de começar este texto sobre o Dia da Consciência Negra, passei os olhos pelas minhas mãos, percebi a minha pele e toda a densidade da negritude que carrego comigo desde que nasci, em junho de 1988.

Diferente de todos os trabalhos jornalísticos que já fiz, ocasiões em que precisei manter a neutralidade ao narrar os fatos, dessa vez, manifestei ao meu editor o desejo de ser o Isaac de Sousa Ribeiro. Impossível ignorar o peso de ser um homem preto.

Na verdade, eu não pensava nessa questão de que somos brancos ou pretos até o dia em que minha rua, lá no bairro Linhares V, em Linhares, no Norte do Estado, foi asfaltada. Eu acompanhava tudo do portão da minha casa, ainda criança.

Lembro do cheiro do piche como se fosse hoje. Aquele monte de máquinas, caminhões e trabalhadores uniformizados. Não tinha somente eu de plateia. Os colegas que moravam ali também assistiam ao desenvolvimento da região.

Num desses dias, alguém emitiu o certificado de que eu detinha uma marca que naturalmente iria me seguir: eu era preto. Contando isso aqui agora é que fui me dar conta de que eu e meus dois irmãos éramos as únicas crianças pretas da rua.

Frase que ouvi na década de 1990

Fala de um vizinho

"Isaac parece um picolé de asfalto. Ele é preto igual a nossa rua tá ficando"
Isaac Ribeiro atua como jornalista profissional desde 2009. Crédito: Murilo Marim
Isaac Ribeiro atua como jornalista profissional desde 2009. Crédito: Murilo Marim

Faz tempo, mas a realidade racista do Brasil não me permitiu esquecer esse episódio. Já vivi e ainda vivo outros tão ou mais marcantes que esse. Não sei mensurar o impacto, mas, a partir disso, foi possível notar todas as nuances dessa praga social.

Hoje, tenho certeza que a vida permitiu que todos nós, envolvidos naquele episódio, evoluíssemos, mas, lá atrás, nem sabíamos a força que aquela "piada" imprimia na vida daqueles que eram - e ainda são - julgados diferentes pelos intolerantes.

Acontece que não é brincadeira que somos o povo mais impactado pelas desigualdades sociais sentidas durante a escravidão dos povos negros no país e, mesmo após o fim dela, há pouquíssimos 133 anos.

Depois da conquista da liberdade, as mulheres e homens pretos ficaram à mercê da já conhecida força de vontade de sobreviver.

DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA

Por tudo isso, dia 20 de novembro é a data de ecoar o grito negro. É o que defende Jacyara Silva de Paiva, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, da Universidade Federal do Espírito Santo (Neab/Ufes).

Jacyara Silva de Paiva

Coordenadora do Neab

"É o dia de desvelar que somos um povo de luta, um povo resiliente. Juntamos os nossos cacos e montamos estratégia de luta o tempo todo contra o racismo estrutural genocida, que tenta nos dizimar desde o Brasil-Colônia"

Desde 2003, o Dia Nacional da Consciência Negra é celebrado como um marco de resistência e uma oportunidade para fomentar discussões sobre questões relevantes para o Movimento Negro. A data está regulamentada pela Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que incluiu o dia 20 de novembro no calendário escolar.

DATA É UM MARCO DE LIBERTAÇÃO

A advogada Rayane Loiola, de 31 anos, é militante do Movimento Negro capixaba. Para ela, o 20 de novembro “é um marco para lembrarmos que, por mais que nosso povo foi escravizado, não sucumbiu. Viramos quilombo e, por meio da nossa resistência, mesmo tendo nossos direitos retirados, criamos estratégias de sobrevivência e nos libertamos”, destaca.

Loiola denuncia que o racismo entranhado na sociedade fere como uma cicatriz na alma.

“Eu sou filha de mãe preta, pai preto... Venho de uma família que a gente não conversa sobre racismo no almoço, mas a gente sabe exatamente quando aquela lágrima vem de discriminação”, completa.

DIVERSIDADE DE DISCUSSÃO

Há muita discussão em torno do que é preciso, permitido ou apropriado falar no Dia da Consciência Negra. A diversidade do pensamento, inclusive das diferentes vertentes do Movimento Negro, atesta a multiplicidade natural da sociedade.

Mulher preta, a produtora de moda Gisele de Freitas Reis, de 32 anos, acredita que o mês de novembro é “uma oportunidade para revermos percepções, não celebrar. É um dia de conscientização, não só para nós, pretos, mas para outras pessoas do quão a escravidão foi prejudicial, de quanto a gente é mal pago, de quanto a gente é mal visto”, salienta.

A SUSPEITA DO SUPERMERCADO

O músico e compositor Waguinho Azevedo, de 31 anos, mora no Romão, em Vitória, desde que nasceu. Profissional que se apresenta na noite, ele é bastante comunicativo e está acostumado a lidar com questões embaraçosas.

No entanto, quando eu perguntei se ele lembrava quando foi a primeira vez que o fizeram sentir-se mal por ser preto, ele parou e respirou fundo para pensar. Alguns longos segundos depois, respondeu.

Waguinho Azevedo

Músico

"Foram tantas...mas tem uma história de quando eu e meus amigos fomos ao supermercado. Quando a mãe chamava o filho para sair, a molecada ia junto"

A narração continua com ele apresentando mais um capítulo da desconfiança monocolor que ainda o segue.

“A verdade é que a gente já sabe como [o racismo] funciona. A gente entra no mercado, olha pra trás, e sempre tem um acompanhante: o segurança”, desabafa.

Além de Waguinho, Rayane e Gisele também comentaram sobre episódios de racismo vivenciados em estabelecimentos comerciais. O supermercado é o palco exemplificado por todos. Eu mesmo tenho registros desse tipo de abordagem.

O QUE EXPLICA ISSO

Para analisar o motivo dessa realidade, conversei com Luizane Guedes. Ela é pós-doutora em Psicologia, professora da Ufes e militante do Movimento Negro no Espírito Santo. Segundo ela, é como se o corpo negro tivesse diretamente ligado à criminalidade.

Luizane Guedes

Professora da Ufes

"Isso é uma construção histórica, é datada do século XVIII, quando, no período da libertação dos escravizados, era necessário criar um novo rótulo para esses corpos, prendê-los de outra forma. Se não nas senzalas, nos presídios"

Quando é preciso adotar comportamento alternativo como forma de não chamar a atenção do que seria considerada uma “atitude suspeita”, Guedes explica que isso é interpretado como uma “morte subjetiva”.

“Ela é tão massacrante que você passa a tomar certos cuidados que, às vezes, não interpreta como medo do racismo. Você acha que é natural não abrir uma bolsa dentro de lojas e supermercados. Você passa a ter medo de andar com mochila. Você passa a não viver de fato, é a morte em vida”, detalha.

O atestado cruel de que o racismo atravessa a pele negra é um comentário espontâneo de Luizane. Em determinado momento, para embasar o discurso, ela comentou sobre uma experiência que protagonizou enquanto criança.

Luizane Guedes
Luizane Guedes explica o impacto do racismo. Crédito: Reprodução/Instagram

“Tomei a primeira ‘batida’ dentro de um supermercado quando eu tinha 7 anos. Me revistaram sem a presença da minha mãe. Me levaram para um quartinho e me revistaram porque acharam que eu tinha colocado alguma coisa dentro do short”, relembra.

Ela conta que nunca mais conseguiu agir de forma natural nesses espaços.

“Para a gente acabar com esse tipo de situação, só combatendo o racismo estrutural e, para isso, a gente vai ter que pensar em formação contínua, pensar em educação para que nossas crianças resistam a esse tipo de situação”, sugere.

LEGISLAÇÃO

Em 2019, a Polícia Civil do Espírito Santo criou  a Seção de Investigações Especiais - Pessoas Vítimas de Discriminação Racial, Religiosa, Orientação Sexual ou Deficiência Física. 

O serviço funciona na Chefatura da Corporação,  no bairro Santa Luiza, em Vitória. De acordo com a polícia, "a seção recebeu poucos registros e não há, neste momento, nenhum inquérito policial em andamento na unidade", informa a nota.

Questionada pela reportagem, a Secretaria de Estado da Justiça (Sejus) informou que não há ninguém preso por racismo. No entanto,  há três pessoas presas por injúria racial. O tema foi assunto de discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Senado.

No último dia 28, o STF decidiu que a injúria racial é equiparada ao crime de racismo e, portanto, esse tipo de delito é imprescritível e deve ser punido a qualquer tempo, independentemente do período que se passou do episódio.

Já na última quinta-feira (18), por unanimidade, o Senado aprovou o projeto de lei que tipifica a injúria racial como racismo. A proposta prevê pena de multa e prisão de dois a cinco anos para quem cometer o crime.

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